O medo do outro: como lidamos com o que aflige o próximo

Meu marido tem alguns medos, e eles vêm de longa data (pelo menos desde que eu o conheci, há 13 anos). Medo de peixe, por exemplo. Ele tem puro pavor a esses animais. Um vez estávamos na praia do Farol da Barra, aqui em Salvador, e passou um cardume enorme, brilhante sob o sol, composto por peixinhos bem pequenos. Desviei o olhar um segundo para admirar tal cena e, quando voltei a atenção para Rafa, ele esta correndo (sim, é possível correr no mar, ele comprovou a tese), gritando e sacudindo os braços.

 
 

Medos diferentes, mas parecidos

Outro pânico dele é de estrada. Mais precisamente viajar de carro (não que ônibus seja muito mais fácil para ele, mas noto que é em veículo pequenos que o medo dele aparece mais forte). Logo quando o conheci, ele fez uma grande viagem a trabalho pelo interior da Bahia, estado que está entre os maiores do país. Os deslocamentos entre as várias cidades era feito em um automóvel da empresa da qual ele era funcionário. E para piorar, havia um único CD no som. Estamos falando de uma época sem Spotify e afins. Para sacramentar o martírio, o álbum era um do Legião Urbana. Nada contra, até tenho memórias afetivas com a banda de Brasília, mas que é dureza passar horas e horas ouvindo “todos os dias quando acordooooo”, ah, isso é.

Enquanto escrevo esse texto ele está fazendo a mala. Parte amanhã para uma jornada de uma semana no Vale do Capão, na Chapada Diamantina, com um casal de amigos. O Capão é um lugar muito, muito lindo. E muito, muito distante de Salvador, umas oito horas de carro. Eu não vou. Odeio o tédio do confinamento no espaço mínimo de um carro. Mas Rafa está há dias agitado. Às vezes olha para mim e começa a chorar. Tem a certeza de que algo de ruim acontecerá, algo que envolve as palavras “C-A-R-R-O” e “B-A-T-E-R”— não vou escrever a frase pois sou supersticioso (mentira, nem sou, mas vai que, né?).

Isso me fez pensar muito em como eu fico nos dias que antecedem uma viagem de avião. Ansiedade a mil, assim como meu marido está agora. Ele tem zero medo de acabar a vida numa aeronave, assim como eu nem penso em finitude quando estou em um carro. Engraçado como somos, de certa forma, opostos. Eu temo o céu; ele, a terra. Eu não posso ver um portão de embarque que me tremo todo. Já Rafael começa a suar frio antes mesmo do primeiro pedágio.

E como lidar com as limitações do outro? Tudo é muito pessoal. Eu, ao longo dos anos, fui descobrindo as melhores formar de tratar Rafa nesses dias de tensão. A principal delas é dengar. Quase todo mundo gosta de um dengo, né? Acolher a dor do outro também é uma boa. Ouvir, deixar que a pessoa se expresse e coloque os demônios pra fora. Fazer coisas que o outro gosta de fazer também pode funcionar (no caso aqui de casa isso inclui comer coisas gostosas e ver Rupaul Drag Race). Tudo para tentar pensar em outra coisa, desviar a atenção do objeto do pânico.

Nota: o marido vai pra academia e eu aproveito a pausa para ver Desespero Profundo (Prime Video). O filme envolve acidente de avião e tubarões — que, claro, são peixes enormes. Unindo nossos medos.

E o pior é que o medo às vezes contagia. Eu fiquei todo medroso esse dias (ele acabou de entrar no carro dos amigos, são 6h30 da manhã e a estrada é longa). Eu já vinha me sentindo estranho nos últimos dias. E hoje ao acordar tive a certeza: também estava com pavor de acontecer algo a ele. Sei que só vou relaxar totalmente daqui a sete dias, quando ele voltar pra casa.

Até lá, vou fazer o que sei: ser jornalista. Entrevistarei uma profissional.

com a palavra, os especialistas

A psicóloga Fernanda Machado da Cunha (@fernandamachado.psi no Instagram) explica que o medo é uma emoção básica do ser humano. Ou seja, faz parte da natureza humana sentir medo. Evolutivamente, isso foi importante para nossa espécie. “O medo é uma resposta emocional a uma ameaça, seja ela real ou imaginária, e tem a função de preparar o indivíduo para enfrentar tal ameaça, seja lutando, fugindo ou agindo de forma estratégica para lidar com tal ameaça”.

“Ele passa a ser patológico, ou seja, ele passa a ter uma conotação de doença a medida que interfere significante na vida do indivíduo com sofrimento, afetando a qualidade de vida e trazendo prejuízos na vida da pessoa”, explica Fernanda. Ela ressalta que, por se tratar de um adoecimento emocional — ou seja, psíquico —, profissionais da saúde mental são os indicados nessa situação e a psicoterapia tem a função de ajudar a pessoa com autoconhecimento de forma que o indivíduo possa ser capaz de compreender os conflitos internos relacionados a esse medo, reconhecer e desenvolver estratégias para se relacionar com o pânico.

A profissional ressalta: pessoas que já têm histórico de crises de pânicos, ansiedade em situações de viagem e não estão em psicoterapia para ajudar com essa questão devem buscar ajuda de um profissional. Sobre como lidar com pessoas que estão passando por um momento difícil, por exemplo, a psicóloga dá algumas dicas. “É importante também que quem está acompanhando a pessoa que tem medo excessivo de viajar, seja por conta de medo de voar ou pegar estrada, (é vital que o acompanhante) valide esse sentimento, oferecendo suporte emocional, trazendo informações por meio de uma comunicação clara, evitando notícias de desastre ou catástrofes relacionadas com esses eventos, pois podem ser situações que podem levar o indivíduo a achar que também pode acontecer com ele”.

Além disso, ter cuidados com a saúde nos dias que antecedem a viagem ajuda muito, como buscar ter uma boa alimentação, praticar exercícios físicos, ter boas noites de sono para ajudar a preparar o corpo e a mente para lidar com o evento da viagem. Outra forma de lidar com esses medos é praticar técnicas de meditação e respiração que, segundo a psicóloga, são importantes para que a pessoa se mantenha no momento presente. “A ansiedade se caracteriza por um medo excessivo do futuro. Se a pessoa está em constante estado de medo, antecipando uma situação catastrófica com a viagem, ela está ansiosa e técnicas que a ajudem a voltar para o presente são excelentes”, afirma.

E será mesmo que o medo pode ser contagioso? Por exemplo, alguém vai viajar de avião e está com muito medo, aí começa a falar desse medo com alguém e a outra pessoa passa a temer o voo também? “Sim. Todas as emoções podem de certa forma ‘contagiar’. É um contágio psíquico, no qual as emoções de uma pessoa podem influenciar, de forma consciente ou inconsciente, as emoções de outras pessoas”.

Então está explicado. Rafa me transmitiu o medo nos dias pré-estrada.

Atualização: ele foi e voltou da viagem sem problemas. Semana que vem é a minha vez de viajar de avião, para Brasília. Embarcam comigo minha mãe, uma irmã e dois sobrinhos. Espero não passar minha aerofobia adiante.

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