Viajante tipo turistão ou raiz: os dois podem conviver

Entre os diversos tipos de turistas, é possível detectar dois bem peculiares: aqueles que visitam apenas as principais atrações turísticas de cada cidade (e que, segundo o clichê, mais postam fotos do que apreciam as coisas) e outros que buscam “a autenticidade”, o que é “raiz”, o que pouca gente conhece. Acho uma bobagem dividir as coisas assim de forma estanque (apesar de conhecer fieis representantes de cada um dos grupos). Tenho de confessar que já fui um viajante em busca apenas do que “foge do óbvio”. O que era muito conhecido e divulgado me entediava. Uma besteira juvenil. Com meus 40 e poucos anos, acho que as duas vertentes podem conviver numa só pessoa.

 
 

Um exemplo de como me tornei bem mais flexível quanto às experiências aconteceu durante minha recente viagem à Espanha. Na véspera da “visita frustrada” ao Alcázar, como relatei na matéria aqui, vi um show belíssimo de flamenco. Pedi a um amigo que mora há muitos anos na Espanha a indicação de onde ver um espetáculo em Sevilha que não fosse tão “pra turista”. Algo “raizão”. Ele me passou um nome. Uma parte foi programada: pegar o endereço, ver quanto custava o ingresso (gratuito, apenas pediam que consumissem alguma bebida no local, um bar super simples chamado La Carboneria), que horas começava o show etc. Mas subestimei a antecedência necessária para achar uma boa mesa. Chegando lá, estava tudo lotado. Conseguimos uma mesa no fundo, com zero visibilidade do diminuto tablado. O calor imperava no galpão. O assento era desconfortável ao extremo (literalmente uma velha tora de madeira). O vinho, ruim. A experiência “raiz” muitas vezes não é “deluxe”.

Achei tudo genuíno. Na hora que o violeiro, o cantor e a dançarina “subiram” no “palco”, não me fiz de rogado: desci e fui ver tudo num cantinho mais próximo, em pé. Fiquei arrepiado. E por que conto isso? Pois no dia seguinte, quis mais. Frustrado com minha não-visita ao Alcázar, não esperei duas vezes: fiz umas pesquisas, li comentários e comprei pela internet um ingresso para um show de flamenco bem turistão. Claro que busquei por um espetáculo com boa pontuação e que não custasse os dois “ojos” da cara (eita que tô só no espanhol hoje). Vi que era super perto de onde estávamos hospedados, menos de dez minutos a pé. Já achei bom sinal.

Meus amigos preferiram ir a um bar rooftop pra beber e ver a cidade iluminada do alto. Eu estava no mood dramático e passional que o flamenco desperta em mim (sim, clichê). Sai sozinho mesmo, bem cedo, e peguei um dos primeiros lugares na fila que já se formava na frente à Casa de la Memoria, onde seria o show. Peguei uma cadeira estratégica que me permitisse boa visibilidade e proximidade do palco, mas também saída livre sem incomodar ninguém caso precisasse ir ao banheiro (digamos apenas que minha intolerância à lactose estava irritadíssima naquela noite). Pois o show começou. Nada a ver com o da véspera. Mas igualmente lindo e emocionante. Chorei horrores. Chorava pelo que via e também pelo fato de estar me emocionando com a arte, assim como fazia meu “eu” adolescente. Era um choro libertador que se retroalimentava.

Resultado? Valeu a pena o show gratuito perrengue do dia anterior assim como valeu cada centavo a apresentação “para turista ver”. Por que temos de nos reduzir a uma coisa ou outra? É legal ter uma experiência local, ir naquele restaurante baratinho onde só vão as pessoas da região e que são cada vez mais difíceis de encontrar, “culpa” da internet e redes sociais (aliás, “culpa” entre aspas pois não sei se isso é bom ou ruim). Mas também é ótimo se encantar com aquele monumento que todo mundo tira foto e joga no instagram.

Talvez o segredo seja balancear as coisas: em Nova York, quando fui em 2014 com meu marido, demos “check” em muitas atrações famosas. Mas também fui em um museu sobre o cinema no Queens que era ótimo e vazio, dica de um casal de amigos que nos recebeu por lá — Rafa aproveitou pra ir em alguns lugares que eu não estava a fim de ver, super apoio a ideia de se separar às vezes. Mas também andamos sem muito rumo, apenas vendo o ar da cidade. Ficamos em uma parte do Queens chamada Astoria, bem perto de Manhattan. É um lugar de forte migração grega. Foi lá que nasceu e viveu durante a infância a cantora lírica Maria Callas, que tanto amo. Só de estar lá, imaginando como teria sido aquele pedaço da cidade na época da diva, já era maravilhoso.

E é possível se surpreender também com o “turistão”. Ainda nessa viagem de 2014, resolvemos fazer um passeio de barco ao redor da ilha de Manhattan. Na enorme fila, claro, só tinha estrangeiro. Pois foi incrível. Como bem disse meu marido, que é arquiteto, foi uma experiência muito interessante ver a cidade “de fora”, de um ângulo novo para quem estava há dias engolidos pelos arranha-céus. E de bônus ganhamos uma verdadeira apresentação de stand-up comedy. A guia que ia narrando o passeio era uma figura engraçadíssima e todos riam com os comentários que ela fazia. Pra melhorar, estávamos saboreando uma deliciosa pizza que Rafael comprou antes de embarcarmos. Mais nova-iorquino impossível.

E mesmo em Roma, cidade onde já morei e visitei incontáveis vezes, sempre que vou pra lá faço questão de ir a alguns lugares. O Panteão, por exemplo, se eu tivesse só um turno para bater perna pela cidade eu certamente optaria por visitar esse templo de dois mil anos de idade. Pela milésima vez. Disputando espaço com os turistas, todos (justamente) boquiabertos. Mas depois correria para a pequena doceria siciliana pouco frequentada que eu amo e que nem o nome sei (mas sei como chegar). É aquela coisa: um pouco de cada qual e todo mundo fica feliz.

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