Turismo de risco: quando leis e costumes discriminatórios dos destinos ameaçam viajantes
Mulheres, negros e negras e pessoas LGBTQIA+ e de outros grupos sabem muito bem que certos locais são perigosos para suas existências. E não estamos falando aqui apenas de becos escuros ou ruas desertas. Estamos falando de países que possuem costumes ou mesmo leis discriminatórias que colocam a vidas dessas pessoas em risco, de pequenas a grandes violências. Com a Copa do Catar (que viola diversos direitos humanos), essa questão ficou mais evidente e se tornou assunto global, mas tal realidade é antiquíssima.
A relação de países que desrespeitam direitos de forma mais gritante, infelizmente, não é pequena. Professor dos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hotelaria da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Carlos Alberto Tomelin cita alguns deles, desde casos mais “óbvios”, como Arábia Saudita e Rússia, até nações que, para o público leigo, passaria longe da lista, como as paradisíacas ilhas caribenhas de Barbados e Santa Lucia. Por outro lado, os destinos mais seguros e com garantias de direitos civis plenos estão na agenda da Organização Mundial do Turismo (OMT) , explica o especialista, e são aqueles que mais respeitam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da entidade, entre eles o fim das desigualdades e respeito às diferenças de gêneros. “Na Espanha e alguns países da Europa os critérios para a certificação de Destinos Turísticos Inteligentes abrangem os eixos estruturais tais como: Governança, Inovação, Tecnologia, Sustentabilidade e Acessibilidade (segurança sanitária, segurança cidadã, prevenção e respeito às diferenças de gêneros e a não exploração de crianças e adolescentes)”, afirma, acrescentando ainda que os governos devem agir firme e rapidamente para terminar com a repressão aos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, abordar a discriminação e estereótipos e implementar medidas concretas para atingir justiça de gênero, que são orientações da OMT.
“Potencialmente, todos os destinos que não têm ou não efetivam políticas públicas e ações de transformação das atitudes preconceituosas e intolerantes à estes segmentos sociais, são perigosos para turistas, pois que estas pessoas não deixam de ocupar seus lugares nestes segmentos simplesmente por naquela ocasião estarem nesse lugar de viajante”, ressalta Thiago S. Melo, professor do curso de Turismo da Universidade de Brasília (UnB). Como exemplo, ele cita o ato terrorista ocorrido na sexta-feira passada, em Aracruz, no Espírito Santo, que matou quatro pessoas — todas mulheres (e das cinco vítimas que seguem internadas em hospitais até a publicação desta matéria, quatro são do gênero feminino). “Não me parece uma simples coincidência, considerando os símbolos e a ideologia que o assassino reverencia”, diz Thiago. O atirador de 16 anos teve acesso a conteúdo nazista, inclusive um livro escrito por Adolf Hitler, presente do pai.
Portanto, o pesquisador da UnB prossegue, é preciso compreender que não é possível falar em uma segurança pública para turistas e outra para pessoas locais. Por isso mesmo, os países e localidades que abertamente menosprezam a salvaguarda da vida destes segmentos sociais são potencialmente perigosos para turistas. “E é importante dizer que é um risco de fato potencializado, pois muitas vezes quem viaja não observa a cultura local, e quer imprimir seu modo de se comportar, o que termina por criar conflitos, que variam em magnitude e desdobramentos. Cumpre dizer, portanto, que o turismo não pode simplesmente lidar com a ideia de um multiculturalismo liberal no qual tudo é ‘cultural’ independente do quão agressivo seja em relação à dignidade e à vida em si”, defende Thiago.
Justamente por isso, continua o pesquisador, que países totalitários ou nos quais há uma sobredeterminação religiosa que nega e pune o divergente imposta aos costumes gerais são tidos como os mais perigosos para turistas, como Paquistão, Afeganistão, Nigéria e outros que não observam os preceitos democráticos que garantem segurança à diversidade. Ele ressalta ainda: “Diria que uma democracia de verniz tampouco é eficaz nessa garantia. A população negra, por exemplo, está em risco permanente no Brasil, seja turista ou não”.
Quem nunca pisou e nem pretende ir a países que criminalizam a existência de pessoas LGBTQIA+ é o tradutor brasileiro Alan Ramos, que mora em Montreal, no Canadá. “Eu acredito que o boicote financeiro funciona quando se trata de mover a balança do poder, então não emprego meu dinheiro contribuindo com o turismo de países que desumanizam homossexuais lhes privando de direitos universais”, afirma. Alan diz que, se fosse possível, gostaria de conhecer o Oriente Médio, por apreciar a história, a arquitetura e a culinária daquela região do globo. “Eu viajo menos do que gostaria e a minha pesquisa é mais baseada nas coisas que quero ver do que em uma jurisprudência específica, mas, como homem gay, acabo lendo sobre como serei tratado em determinados locais e onde posso me sentir seguro, isso às vezes acaba levando a descobertas sobre direitos fundamentais. Felizmente, ainda não precisei abortar planos de viagem por descobrir algo que fosse contrário a meus princípios”, pontua.
O tradutor mora no Canadá há pouco mais de 10 anos e nunca teve problemas em relação a direitos humanos no país norte-americano. Um dos traços positivos do sistema que resguarda os direitos humanos por lá, observa o brasileiro, é o fato de que nenhum casal — independente da orientação sexual e de gênero — precisa de reconhecimento em cartório para desfrutar dos mesmos direitos que casais casados. “Meu companheiro pode ser meu dependente nos seguros (de vida e de saúde) da empresa em que trabalho, mesmo que nossa união não seja registrada em cartório”, exemplifica Alan.
Sobre visitar localidades abertamente intolerantes, o professor da UnB sugere que tais localidades devem ser evitadas. “Isso porque a violência é uma construção social e não mera questão de Estado. O feminicídio não é política de Estado de grande parte das localidades tidas como mais perigosas para as mulheres. Tampouco o racismo. Mas ainda assim os números de violência contra as mulheres e os ataques à dignidade humana caracterizados como racismo são crescentes nestas localidades. O que se deve à autorização social da violência. Diria que viajar para um lugar no qual você não pode ter tranquilidade para ser você, não vale a visita. Mata aquilo que é mais encantador na experiência turística, que é o encontro e o (re)conhecimento mediado pela afetividade”, afirma.
Carlos Alberto, da Univali, diz que, caso a pessoa opte ou precise viajar para um país com leis ou costumes discriminatórios, é importante conhecer as leis locais, o código de conduta estabelecido por estes governos não democráticos e respeitar esse código de ética. E, em último caso, estar preparado para ter seus direitos cerceados.
Nesse aspecto, algumas dicas interessantes são dadas por Gilsimara Caresia, fundadora da GirlsGo, agência de turismo exclusiva para mulheres e idealizadora da página no Facebook Mulheres que Viajam e Mochileiras, com quase 200 mil participantes. Ela sugere que, antes do voo de ida, o site do Portal Consular, do Governo Federal, seja acessado. Lá, é possível encontrar todos os tipos de informações atualizadas sobre os países, dos mais variados tipos, inclusive sobre leis vigentes em cada nação e que podem ser um empecilho para quem viaja.
Gilsimara relativiza algumas questões. “Eu acho que o termo ‘perigoso’ pode ter diversas interpretações. Quando a gente fala de crime, eu já estive em mais de 100 países e no quesito segurança eu acho o Brasil um dos piores, então diria de que dos 100 que já estive, em 80 deles me sinto mais segura que no Brasil, e aí acho que o perigoso a gente tem de ver o que é. É o quê? Crime, preconceito, qual a definição do perigo?”, afirma Gilsimara, que é guia de turismo na Índia (“que é um pais cuja fama que chega aqui é muito ruim. É importante ver o que cada país representa de medo ou perigo pra cada mulher”). Ela ressalta que o número de estupros na Índia é considerável, mas afirma que não acontece com turistas, e sim em vilas, com mulheres em situação de vulnerabilidade. Ela recomenda às turistas que busquem grupos no Facebook compostos por mulheres viajantes, para saber de pessoas que vivem nos destinos ou que já passaram por eles como são as condições locais para as visitantes.
O professor Carlos Alberto lembra que, independente do gênero do turista, é importante que os familiares saibam para onde essa pessoa está viajando e que as normas sejam respeitadas. Ele também aconselha adquirir os seguros de viagem, e verificar antes da partida se os países a serem visitados possuem embaixada brasileira e acordo de extradição assegurada. Thiago, da UnB, ressalta que é sempre bom ter os contatos das representações do país de origem, bem como de alguém de confiança na localidade em caso de emergência.
“Ah, então é só viajar para a Europa que tudo será lindo”, pode pensar a leitora ou leitor. Mas nem tudo são flores. Os especialistas concordam que países europeus são mais propensos a oferecer uma visita tranquila a turistas negras e negros, mulheres e LGBTQIA+. Mas há ressalvas. “Se levantarmos os casos de violência à turistas em países como a Espanha (o que fiz pontualmente para a tese de doutorado), veremos que são justamente contra esses segmentos sociais a maioria dos casos. O que não significa que, relativamente, não haja um risco muito menor destes casos acontecerem em democracias fortalecidas do que em países não democráticos ou com uma democracia frágil. Significa, isso sim, que a própria democracia burguesa não é capaz de resolver as contradições do multiculturalismo liberal porque tem compromisso inalienável com esse sujeito referencial do desenvolvimento (homem branco, cis, heterossexual, rico, cristão, morador de áreas consideradas nobres – e por isso mesmo superprotegidas). Um olhar na lista das maiores fortunas e das pessoas mais influentes na geopolítica internacional dá uma boa medida acerca disso”, afirma o docente da UnB.
A Europa também é citada como um mau exemplo por Guilherme Soares, fundador do Guia Negro, que trabalha com produção independente de conteúdo sobre viagens, cultura negra, afroturismo e black business. “Existem alguns países nos quais o racismo é mais presente de forma mais instituída e quase que legalizada, por que os governos não fazem nada em relação a isso, como a Rússia, onde tem esse racismo mais presente, o Leste Europeu como um todo, ja tive amigos que foram expulsos de lojas e de outros lugares e que ninguém fez nada sobre isso, são países em que essas pessoas têm de tomar mais cuidado”, observa Guilherme.
Diretor de Turismo da Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil, Otavio Furtado ressalta que, atualmente, 71 países criminalizam pessoas LGBTQIA+, sendo oito nações com pena de morte vigente em seus territórios. Em algumas delas, ressalta Otavio, até mesmo a discussão sobre a causa LGBTQIA+ é motivo de punição, o que praticamente impossibilita qualquer tipo de avanço nos direitos humanos. Ele diz ainda que apenas 14 países no mundo têm proteção constitucional para essa população. Outros 46 países protegem pessoas LGBTQIA+ por decisões judiciais, como o Brasil. “De uma forma geral o continente europeu é considerado o mais avançado nesse sentido, já que concentra a maior parte dos países considerados seguros para essa população. Um destino só é seguro para o turista LGBTQIA+ quando é seguro para o morador dessa comunidade. Ou seja, quando há legislação protetiva e com garantia de direitos, além da importância da execução dessas normas na prática”, pontua.
Para países com leis discriminatórias, Otavio diz que o principal é entender a lei local. Não significa que o turista vá concordar com elas, acrescenta o diretor da Câmara LGBT, mas é necessário ficar atento para não ter problemas legais, ainda mais em um país estrangeiro. De uma foram geral, nesses países, qualquer demonstração de afeto, por exemplo, deve ser evitada. Se a pessoa tiver de viajar para um destino assim, ele aconselha que o turista busque conhecer a legislação local para saber o que é considerado ilegal. Pesquisar muito a respeito e buscar como fontes não só a legislação mas também a experiência de moradores e outros turistas LGBTQIA+ que já estiveram no destino, em especial pessoas que escrevem sobre o assunto.
E caso uma pessoa LGBTQIA+ se encontre em dificuldades, como ser alvo de preconceito ou mesmo de prisão, como ela pode se proteger e buscar auxílio? “Em alguns países não há o que fazer, porque a legislação não nos protege. Neste caso a única coisa que podemos fazer é procurar a representação brasileira no país (consulado ou embaixada para pedir auxílio). Em países que há criminalização da LGBTfobia, aí sim denunciar por meio dos meios legais”, conclui.
Viajar pode ser uma delícia. Ou um pesadelo. Portanto, em sua próxima jornada, além de pesquisar preços de passagens aéreas e hotéis, é bom incluir na busca como anda o respeito aos direitos humanos nos lugares a serem conhecidos. Pode fazer toda a diferença.