Driblando o medo de voar: Um jogo simples para acalmar os nervos nos momentos de pânico

ABC, adedonha, adedanha, stop. Os nomes para essa brincadeira são muitos, a depender da região do país. Mas quase todo mundo conhece. É aquele passatempo que elenca categorias (geralmente incluem frutas, comidas, países e outras que a criatividade abarcar), depois uma letra e todo mundo começa a completar a lista. Assim, vamos supor que a letra valendo é a B. Então, dada a largada, cada um escreve no papel. “Fruta: banana”, “comida: baião de dois”, “país: Bolívia” — e por aí vai. Eu amo ABC desde criança e volta e meia ainda jogo com minha mãe. Tem até versão online, para brincar pela internet.

E o que isso tem a ver com medo de voar?

 

Ué… o Pato Donald? Até o fim do texto vocês irão entender

 

Voar, panicar e jogar

Uma seguidora do rivotravel no Instagram foi quem me deu a dica (infelizmente não me recordo quem foi — se estiver lendo, por favor se pronuncie aqui nos comentários). Para os momentos mais difíceis do voo, nos quais se sentia mais nervosa, ela fazia uma versão um pouco diferente da brincadeira. Ela escolhia um só tema (ex: frutas) e aí começava a lista mental (eu prefiro falar baixinho) de todas as que conseguia lembrar, de A a Z. “Atemoia, Ananas, Abacaxi, Banana, caju…”. E a lista segue... A ideia, ela me contou na época, era justamente criar uma distração, fazer com que o cérebro descolasse daquele foco (o medo) e passasse a ficar centrado em outra coisa qualquer. E como bem sabemos, na hora que o bicho pega a gente até pagaria para estar com a mente em outro lugar.

Não sei bem quando foi que comecei a usar esse método, em qual voo foi. Desconfio que foi em alguma viagem em meados de 2023. Só sei que deu super certo! Eu fiquei impressionado. No meu caso, o ápice do pavor é justamente a decolagem, entre o momento que o avião começa a acelerar até a hora que o piloto apaga o aviso de atar os cintos, sinal que foi tudo bem na subida. Nessa etapa do voo, fico suando frio, a barriga dói, todos aqueles sintomas clássicos. Pois fazer o ABC tem sido um alívio para minha aerofobia. E no meu caso parece que dura o tempo certinho. Antes de chegar no Z o aviso da cabine de comando decreta o fim de meu tormento. Ainda bem, pois a última letra do alfabeto é bem difícil, mesmo para viciados em palavras-cruzadas como eu.

Imagino que para pessoas que têm outros momentos de pânico, como longas turbulências, uma só categoria não vai ocupar todo o tempo do medo. Aí a sugestão é botar num papelzinho ou no celular uma série bem grande de temas (são muitos mesmo, como marcas de carro, cidades do Brasil, cidades do mundo, grifes de roupas, bebidas, cores, animais, nomes de novelas e séries…). Dá para ocupar a mente um bocado!

O engraçado é que, com o nervosismo, parece que a gente esquece de um monte de item que se encaixaria na categoria escolhida! Ou então fala coisas improváveis. Tipo “Fruta com letra C? Carambola, Cajá, Cravo da India”. Eu acabo rindo de mim mesmo às vezes, o que é ótimo em momentos de pânico. Nos vídeos que eu faço durante as viagens para depois postar nas redes, eu costumo incluir esse momento do ABC da decolagem. Em um voo que fiz no começo do ano, eu achei que o registro já estava longo demais, que ia ficar chato para quem assiste. Aí decidi não colocar o jogo. Pois não teve seguidor reclamando? Bom saber que vocês gostam do que faço aqui e nas redes sociais.

Já no meu penúltimo voo, de Salvador para Campinas, eu fiquei tão paralisado que simplesmente acabei me esquecendo de fazer a brincadeira! Como dizem, a mente bugou de vez. O piloto, ao invés de conduzir o avião no qual eu estava para a pista principal do aeroporto daqui, ou seja, a maior, pegou o rumo da pista menor. E eu só pensando: “meu Deus, tem algo de errado, não é possível que ele vá decolar nessa pista minúscula”. Pois decolou — e decolou super rápido, creio que justamente pelo tamanho diminuto da pista, que tem extensão de 1.518 metros, praticamente a metade da outra, que mede 3.003 metros. Mas como a aviação é super segura, creio que estava tudo “nos conformes”. Mas na hora eu só pensava no pior. E nem tive cabeça pro ABC.

o que a ciência diz?

Mas será que isso tudo tem respaldo científico? Para responder essa pergunta, entrevistei a psicóloga Amanda Silva, mestra em ciências do comportamento e especialista em clínica analitico-comportamental, que me explicou um pouco sobre essa “técnica” a partir da perspectiva da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Para a ACT, pontua a profissional, o que mais se aproxima desse “truque mental do ABC” é a desfusão cognitiva, uma estratégia que tem como objetivo nos ajudar a nos desprender dos pensamentos que nos afastam de viver uma vida que faz sentido.

“Quando você lista os países para cada letra do alfabeto, você mantém sua atenção no momento presente e não tanto na ansiedade. Apesar de serem palavras com significado, nesse contexto elas não exercem essa função, servindo apenas como distratores dos pensamentos de medo”.

“Pense em um animal não humano, como uma zebra por exemplo. Instintivamente esses animais conseguem utilizar seus sentidos para distinguir situações de perigo de situações seguras, ao avistar um leão por exemplo eles podem fugir ou lutar. Esses mesmos animais não conseguiriam se comunicar verbalmente para avisar os outros, mas nós conseguimos fazer isso por causa da nossa linguagem”, diz Amanda, acrescentando ainda que a linguagem é o que nos permite pensar, lembrar, comunicar e planejar, mas também é o que nos faz ter ansiedade, por isso técnicas que envolvem a linguagem ajudam nesse tipo de situação. E por ser tratar de uma estratégia baseada em linguagem, funciona melhor para pessoas que têm a habilidade da fala bem desenvolvida — mas é possível pensar em outras estratégias que também funcionariam como uma "distração".

A pesquisadora cita quais seriam essas outras formas similares de desfusão. Uma delas é a rotulagem dos pensamentos. “Quando pensar ‘esta situação é perigosa’, repita o pensamento dizendo ‘acabei de perceber que estou tendo o pensamento de que esta situação é perigosa’. Isso ajuda a se desprender do significado do pensamento, fazendo com que ele seja percebido como apenas um pensamento e não como uma realidade absoluta”, afirma. Outra forma de lidar com essas situações difíceis é a chamada “voz do personagem”. “Diga seu pensamento usando uma voz engraçada, como a do Pato Donald ou Mickey Mouse. Isso ajuda a desarmar a seriedade do pensamento”, explica Amanda.

Eu particularmente amei essas duas técnicas e vou botar em prática no meu próximo voo, que, aliás, é em menos de um mês.

“Que eu tenha um bom voo” (na voz do Pateta, que eu sei imitar bem).

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