Cidades em cena #05: Rio de Janeiro
Com o sucesso de Ainda estou aqui, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, me lembrei dessa série de matérias que estava meio esquecida: a Cidades em Cena. Então resolvi fazer um texto sobre como o Rio de Janeiro é retratado pelo cinema. A começar, claro, pelo título que está em evidência no momento, a obra dirigida por Walter Salles e atuações de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro.
AiNDA ESTOU AQUI (2024)
O filme começa com Eunice, a personagem de Fernanda Torres (que ganhou o Globo de Ouro pela atuação e concorreu ao Oscar de melhor atriz pelo papel), se banhando no mar do Rio e vendo helicópteros do Exército sobrevoando a praia (já para situar o espectador que a trama se passa na Ditadura Militar). Uma das grandes estrelas do filme sem sombra de dúvidas é a casa onde mora a família Paiva, tão acolhedora e tão desolada, viva e morta. A construção, que data de 1937 e tem 480 m², está localizada na esquina da rua Roquete Pinto com a avenida João Luiz Alves, na Urca (bairro bucólico famoso pelo movimentado Cassino da Urca nos anos 1930 e 1040, palco para nomes como Carmen Miranda). O imóvel de dois andares usado no filme passou por reformas para ficar mais parecida com a residência onde viveu a família de Rubens Paiva (torturado e assassinado pelos militares), nos anos 1970. Diversos moradores e turistas passaram a incluir a rua como parte do itinerário de visitas ao Rio. No início do mês, o prefeito Eduardo Paes anunciou a intenção de transformar o espaço na Casa do Cinema Brasileiro, um museu interativo com exposições sobre o sétima arte. Outros pontos usados como locações são o Colégio Sion (onde Eunice tem uma cena forte na igreja local) e a Confeitaria Manon, na rua do Ouvidor, no centro. A administração da loja de doces inclusive disse que a freguesia aumentou com o lançamento de Ainda estou aqui. Ela aparece em dois momentos distintos: antes, com a família inteira se divertindo; e depois, já sem a presença de Rubens Paiva. Inclusive a cena de Eunice com os filhos, sem o marido, olhando as famílias felizes nas mesas ao redor, é emblemática.
A reconstituição de época chamou a atenção até dos proprietários da casa onde foi gravado Ainda estou aqui
A Manon, confeitaria histórica que funciona desde 1942 no centro do Rio de Janeiro, foi palco de duas cenas centrais da trama: Eunice com a família toda reunida e depois tentando elaborar o luto de uma perda não oficial
2. MADAME SATÃ (2002)
Esse é um filme que muita gente não conhece, mas que eu acho de uma beleza ímpar. Com direção de Karim Aïnouz e atuações de Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo, Flavio Bauraqui e Renata Sorrah, o longa-metragem foi lançado em 2002 (vi duas vezes no cinema e fiquei embasbacado). Conta a história real do artista performático João Francisco dos Santos, que ficou conhecido como Madame Satã. Ambientado na década de 1930, mostra a Lapa efervescente, decadente e racista. João era preto, homossexual, flertava com o universo feminino, “transformista”, tudo que a dita “sociedade” rejeitava na época (e continua rejeitando). Toda aquela região era sinônimo de boemia e resistência cultural. Quase um século. atrás, a Lapa era território de cafés, bordéis e apresentações de cabaré, com um ambiente ao mesmo tempo marginalizado e fervilhante. As filmagens ocorreram em sua maior parte no bairro — pertinho dos famosos Arcos da Lapa — e regiões adjacentes (além de Paquetá, um verdadeiro oásis de tranquilidade), onde o artista Madame Satã de fato frequentava e vivia. O filme transmite bem o ar decadente do centro do Rio naquele período. Satã e sua família, formada por amigos, moravam em um cortiço. Nada mais atual. O centro carioca é belíssimo, mas muitas construções estão caindo aos pedaços. Literalmente. Semana passada um antigo casarão abandonado da zona central da cidade caiu parcialmente, matando uma pessoa que estava dentro de um carro.
Marcélia Cartaxo e Lázaro Ramos (segurando criança não identificada) em cena do filme Madame Satã, em um cortiço no centro do Rio de Janeiro
Lázaro antes de começar uma das emblemáticas performances artísticas do personagem real que dá nome ao filme
3. RIO (2011) — e a sequência: Rio 2 (2014)
Como deixar de fora da lista essa explosão de cores e de carioquice? Ok, é um pouco clichê, mas mesmo assim divertido. Na trama, Blu é um exótico pássaro de estimação que vive nos EUA e acredita ser o último de sua espécie. Mas quando sua dona fica sabendo sobre Jade, uma fêmea da espécie de Blu no Rio de Janeiro, eles iniciam a maior aventura de suas vidas. O filme é dirigido por Carlos Saldanha, conta com dublagens de Jesse Eisenberg e Anne Hathway — além de uma canção indicada ao Oscar, Real in Rio, de Sergio Mendes, Carlinhos Brown e Siedah Garrett. Já em Rio 2, Blu, Jade e os três filhos viajam do Rio de Janeiro para a Amazônia, onde descobrem uma tribo de araras há muito tempo perdida. Enquanto Blu tenta se adaptar, ele precisa lidar com o vingativo Nigel e ainda conhecer o sogro. Os dois filmes são o “puro suco carioca”, com direito a voos ao lado do Cristo Redentor. Há ainda cenas em favelas e no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1984. Além de, é claro, vistas e mais vistas lá de cima da Cidade Maravilhosa — afinal, estamos falando de pássaros, então Carlos Saldanha “usou e abusou” das “tomadas aéreas”, revelando praias, montanhas, lagoas e a densidade urbana do Rio de modo cartunesco e exuberante, mostrando a "selva de pedra” em contraste com imensos bolsões verdes, como a Floresta da Tijuca.
O público gringo associa o Rio imediatamente ao samba? Pois então recebam carros alegóricos em Rio
Em Rio 2 é claro que tem o Cristo Redentor, mas pelo menos em um ângulo pouco explorado
4. velozes e furiosos 5: operação rio (2011)
Mudando completamente de gênero, vamos para Velozes e Furiosos 5: Operação Rio. O filme de ação foi lançado em 2011 e é estrelado por Vin Diesel, Paul Walker, Jordana Brewster e Dwayne Johnson. Na trama ambientada no Rio (como já entrega o título), Dominic Toretto, Brian O'Conner e Mia Toretto planejam um assalto para roubar US$ 100 milhões do corrupto empresário Hernan Reyes, enquanto são perseguidos pelo agente de serviço de segurança diplomática dos Estados Unidos (DSS) Luke Hobbs. O longa foi um sucesso comercial ao redor do mundo. Alguns críticos rotularam o filme até mesmo como o melhor da série, misturando comédia e ação. Mas houve também quem apontasse a forma negativa como a cidade foi retratada, um verdadeiro refúgio para o tráfico de drogas e corrupção. Um detalhe importante a ser dito: parte da produção foi gravada em Porto Rico, por conta de incentivos fiscais oferecidos pela ilha caribenha. Mas isso não quer dizer que a equipe e elenco não tiveram por aqui. No Rio, foram filmadas cenas em diversos pontos, como o Morro do Pão de Açúcar, Forte de Copacabana, praia de Ipanema, ponte Rio–Niterói, Cristo e a comunidade do morro Santa Marta. Este último, inclusive, foi o primeiro a receber uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) e ficou conhecido internacionalmente nos anos 1990 após o clipe de Michael Jackson da música They Don't Care About Us. Hoje, abriga um mirante com vista magnifica para o Pão de Açúcar, Cristo Redentor, estádio do Maracanã, Baía de Guanabara e Lagoa Rodrigo de Freitas.
Elenco de Velozes e Furiosos 5: Operação Rio em cena no Arpoador, com parte de Ipanema ao fundo
Cena de ação gravada na Ponte Rio—Niterói
5. feitiço do rio (1984)
Eu me lembro vagamente deste filme hollywoodiano de 1984, com o oscarizado Michael Caine e… Demi Moore (que esse ano quase foi a antagonista da corrida de Fernanda Torres no Oscar)! Feitiço do Rio é uma chuva de clichês. Há inúmeras cenas mostrando as belezas naturais da região. Não há nada de errado nisso, é claro. Mas volta e meia aparece uma arara! Isso é muito bom! Seria algo como filmar um filme na Finlândia e sempre cruzar com um alce ou quem sabe uma foca na rua. Mas a história provavelmente não seria aprovada pelos estúdios hoje em dia (graças a Deus). Vejam só vocês. Matthew (Michael Caine) e Victor (Joseph Bologna) resolvem passar suas férias nas areias das praias cariocas, cada um levando sua filha adolescente. Uma vez no Rio de Janeiro, Jennifer (Michelle Johnson), filha de Victor, começa a seduzir Matthew, que inicialmente (inicialmente!) resiste. Socorro. O filme só tem uma indicação a prêmios: ao Framboesa de Ouro que escolhe os piores do ano (no caso, quem concorreu foi a estreante Michelle Johnson, que, ufa, não ganhou o troféu). Uma das fotos que escolhi para a matéria mostra justamente Michael Caine num 747 da Varig (afinal, esse site também é sobre aviação)! Eu me lembro bem desse estofado amarelado que a finada empresa aérea usava nos anos 1980. Uma memória afetiva.
Vegetação exuberante, morro (atrás) e…arara! É assim que os gregos enxergam o Brasil
O ator Michael Caine em cena dentro de um avião da finada companhia aérea brasileira Varig: estofado clássico
6. cidade de deus (2002)
Uma lista sobre filmes gravados no Rio não estaria completa sem ele, uma das obras cinematográficas mais lembradas por brasileiros e estrangeiros: Cidade de Deus. O roteiro conta a história do surgimento e crescimento da favela que dá título ao longa metragem, além da trajetória de diversos personagens. E é recheado de falas icônicas: afinal, não tem como se esquecer da frase “Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno”. Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, também brilhou nas bilheterias e premiações internacionais. Foram quatro indicações ao Oscar: direção, roteiro adaptado, fotografia e edição (como não lembrar da cena frenética da perseguição à galinha, dentre outras?). Boa parte das cenas mostra comunidades carentes cariocas. Segundo matéria da Folha Online da época do lançamento, “a produção não conseguiu entrar em todos os pontos da favela, um sinal que o poder do tráfico impera no morro carioca”. O texto segue lembrando que, construída pelo governo de Carlos Lacerda entre 1962 e 1965 na zona oeste do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus é um núcleo habitacional que foi povoado por moradores de áreas atingidas pelas enchentes mais fortes que a cidade já enfrentou em sua história. Em um artigo de 2014 do jornal O GLOBO, o mestre em geografia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Michel Vieira de Lima e Silva conta um fato curioso: toda a primeira parte do filme, a Cidade de Deus nos anos 1960, foi rodada no conjunto habitacional de Nova Sepetiba que, apesar de já estar parcialmente ocupado, não havia sido oficialmente inaugurado. “Já segunda fase, a Cidade de Deus na década de 1970, foi realizada em um conjunto construído na mesma época, a Cidade Alta. No entanto, a terceira fase, o bairro nos anos 1980, foi filmada na própria Cidade de Deus e também em estúdio, com vistas à segurança e para facilitar a sua produção”, concluiu o especialista no artigo.
Alexandre Rodrigues (Buscapé) em cena de Cidade de Deus
O Rio de Janeiro idílico em uma praia deserta, provavelmente na zona Oeste da cidade, em contraposição ao caos da favela
7. central do brasl (1998)
Já que começamos com um filme de Walter Salles, que tal terminar com uma obra de… Walter Salles! E que também teve trajetória internacional, assim como Ainda estou aqui. Central do Brasil, de 1998, teve duas indicações ao Oscar: melhor atriz (Fernanda Montenegro) e filme estrangeiro. Não levou nada, é verdade, apesar de ter merecido muito e de toda a comoção que causou em um Brasil pré-redes sociais. Mas foi premiado no Globo de Ouro (filme estrangeiro) e no Festival de Berlim (filme e atriz). Muita gente se lembra das lindas cenas filmadas no interior do Nordeste, mas o filme começa no Rio de Janeiro, onde aliás está a famosa estação Central do Brasil, ponto de partida para os trens que rumam em direção ao subúrbio carioca. O prédio da estação é um marco ferroviário e arquitetônico do Rio: foi construído na década de 1940 e a torre do relógio é visível de diversos pontos da cidade. As cenas no trem refletem a aridez e a vida nada fácil da personagem Dora, interpretada por Montenegro. Uma locação que me marcou muito foi o edifício Pedregulho, no bairro do Benfica (foto abaixo), que aparece em algumas cenas. O prédio sinuoso é um dos ícones do modernismo brasileiro.
Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira dentro de um vagão de trem da Central do Brasil
Edifício Pedregulho, no bairro de Benfica, no Rio, projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy em 1947 para abrigar funcionários públicos do então Distrito Federal
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É isso, gente. Busquei trazer filmes bem diversos em estilos e épocas. Em comum, todos mostram recortes de uma cidade multifacetada como o Rio de Janeiro.