Mulheres no comando (de aviões), mulheres no poder — parte 1: pioneiras na aviação
Quando paramos para pensar em pessoas que foram desbravadoras na aviação, quem chega logo à mente? Para quem conhece um pouco o assunto, a rivalidade entre Santos Dumont (1873–1932) e os irmãos Wright (EUA) é logo citada. Quem voou primeiro? O brasileiro ou os norte-americanos? Mas pouco importa. Pelo menos aqui nesse texto do rivotravel, que vai ao ar no Dia Internacional da Mulher de 2020, o foco é todo voltado para as pioneiras da aviação. Figuras memoráveis que tiveram posição de vanguarda. Se hoje elas ainda são minoria em algumas áreas (na aviação, inclusive), imagine um pouco como deve ter sido no início do século 20, quando ainda se discutiam questões que hoje nos parecem tão ultrapassadas, como o voto feminino.
A norte-americana Amelia Earhart (1897–1937), talvez a mais ilustre de todas, será citada, obviamente. Mas, em minhas pesquisas prévias para esta matéria, notei que são muitas as pioneiras, tão corajosas quanto Earhart. Como eu brinquei uma vez em nossa conta do instagram (aliás, já nos segue lá?): mulheres no comando (de aviões), mulheres no poder! E por falar no insta, lembrei de uma história maravilhosa que contei lá em 20 de novembro de 2019, Dia da Consciência Negra. Foi um resumo muito breve da vida da incrível Bessie Coleman (1892–1926), a primeira mulher negra a se tornar pilota nos EUA (sim, o termo pilota existe em português), e sobre a qual falaremos mais adiante.
Mas espera um pouco que estou muito confuso e embaralhando tudo. Vamos tentar seguir um pouco na ordem cronológica? Seguir a linha do tempo nos ajuda a dar uma direção, né? Explico minha falta de rumo, gente. Como já disse, são tantas mulheres maravilhosas com histórias inspiradoras que eu já não sei mais o que escrevo nem sobre quem escrevo. Como toda lista, muitas pilotas vão ficar de fora. É uma pena, pois o apagamento das mulheres na história, em todas as áreas, era e ainda é uma realidade. O fato de encontrar pouco material confiável na internet, muitas vezes com informações desencontradas ou conflitantes, já é prova da falta de visibilidade para as aviadoras. E eu não estou falando do Wikipedia, não, pois sabemos que há muita coisa errada ali, né?
Vou começar, então, com um fato que eu nunca tinha ouvido falar até hoje (e isso só mostra como as mulheres foram “esquecidas” pela história). Os Wright tinham uma irmã que foi importantíssima, nos bastidores, para o feito de Wilbur (1867–1912) e Orville (1871–1948), inclusive bancando financeiramente parte do projeto inovador. Ela é tão importante que historiadoras e historiadores consideram Katharine (1874–1929) como a terceira dos “irmãos Wright”. Ela foi pioneira em tudo. Em 1893, entrou para a Oberlin College, uma das primeiras instituições de ensino superior a aceitar mulheres como estudantes nos EUA. O objetivo? Tornar-se professora, uma das poucas opções de carreira oferecidas a “mulheres de família” que queriam algo mais que um “bom casamento” (estou abusando das aspas, não? Mas fazer o quê…?). Com o invento da “máquina de voar” de Wilbur e Orville, ela passou a ter um papel que hoje seria visto como uma mistura de agente, administradora de carreira e assessora de comunicação dos dois, assegurando que tudo desse certo, inclusive nas excursões europeias para apresentar a invenção. Ou seja, fazia tudo para propor os holofotes que Wilbur e Orville tiveram.
Katharine foi, segundo o site da Fundação Wright, a terceira mulher a “voar”, mas como passageira — ela nunca pilotou. Temos de lembrar que o conceito de voar, para os primeiros anos do século 20, poderia ser algumas centenas de metros. Mas a novidade logo atraiu os olhos de inventores e investidores, e a indústria avançou depressa. A primeira a decolar e pousar e também a pioneira no comando de uma máquina voadora teria sido Thérèse Peltier (1873–1926), uma escultora parisiense (arrasou na vanguarda!). A data precisa é incerta, mas teria sido em setembro de 1908. Naquele ano, os equipamentos já eram um pouco mais sofisticados. Ela teria aprendido basicamente por observação, olhando atenta os voos realizados pelo também escultor e aviador Léon Delagrange (1872–1910).
Segundo o site Historic Wings, sobre os precursores (e precursoras!) da aviação, “(Thérèse) se preparou para seu primeiro voo em um conjunto de lições bastante aleatórias. Pelos padrões modernos, o tipo de instrução que recebia seria considerado pouco mais do que “um cego guiando outro cego”.(…). Simplificando: Thérèse observava, praticava junto a Delagrange e, em seguida, à medida que o aprendizado progredia, o “instrutor” simplesmente permitiu que a aluna voasse sozinha. As máquinas estavam longe de serem confiáveis - até um piloto experiente ficaria surpreso com o inesperado. Como resultado, muitos aviadores antigos não sobreviveram mais do que alguns anos antes de cair em alguma falha caprichosa de sua máquina, do motor ou dos ventos”. Cara panicada, caro panicado, não sei você, mas lendo isso eu passei a sentir até mais segurança com a ideia de voar em um moderníssimo avião em 2020.
Mas calma! Parem as rotativas! Apagaram uma norte-americana chamada Aida de Acosta (1884–1962)! Gente, a falta de fontes confiáveis tá babado, viu? E olha que estou pesquisando em português e inglês, para aumentar as chances de sucesso nessa empreitada. Para vocês terem uma ideia, a fonte mais crível que achei foi um livro infantil baseado na vida de Acosta escrito por duas mulheres (Margarita Engle e Sara Palacios) muito premiadas, segundo o site da Amazon. Em The Flying Girl (A Garota Voadora, em tradução livre), é contada a história real de Aida de Acosta, a primeira mulher a voar com uma máquina (olha, já não sei mais nada; o site da Amazon é confiável?). Segundo a Amazon e alguns outros sites, Aida, em 1903, aos 19 anos, estava em Paris e se mostrou interessada no dirigível que Santos Dumont havia construído. Assim, o inventor ensinou como operar a máquina. Enquanto Ainda “dirigia o dirigível” metros acima do solo, o brasileiro ia percorrendo as ruas da cidade de bicicleta, gritando instruções (super seguro, né?), no Campo de Bagatelle.
Acho que a essa altura temos de voltar a narrativa e ver quem voou primeiro. Ou seja, retomar a eterna disputa entre Santos Dumont e irmãos Wright. Eu sempre soube que existia essa briga, mas acho que incorporei o brasileiro patriota e nunca questionei muito. Mas vamos lá pesquisar. Antes disso, corro para a Plataforma Lattes, que reúne currículos de pesquisadoras e pesquisadores no Brasil. Busco, mas não encontro ninguém que já tenha publicado algo sobre as pioneiras na aviação. Não sei por que, mas não me surpreendo…
Voltemos então à internet, esse solo duvidoso com tanta informação errada. Pulando de matéria confusa em matéria confusa, descubro uma de 2006, da Folha de S.Paulo. Igualmente intrincada, mas o motivo é: ninguém se entende. O texto, assinado por Claudio Angelo, editor de ciência do veículo naquele ano, tenta desfazer o nó. Vou tentar não me alongar muito nessa parte, pois o foco aqui, como já disse, são as mulheres. A Folha ouviu o físico Henrique Lins de Barros, então pesquisador do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). O avião, segundo o físico, não tem um pai. Tem vários. “É muito complicado, num desenvolvimento tecnológico, dizer quem foi o pai da criança. Quem inventou o navio? Qualquer um. Um produto tecnológico são várias descobertas que vão culminar num determinado momento”, diz o especialista.
Por exemplo: o alemão Otto Lilienthal (1848—1896) realizou centenas de voos planados no fim do século 19. É tido como a primeira pessoa a manejar um aparelho mais pesado que o ar na atmosfera. Era um avião? Definitivamente não. Mas suas pesquisas foram importantíssimas para a área, como, entre várias outras, destacar a importância da curvatura da asa. O alemão também fez inúmeros experimentos com motores. É o pai da aviação? Não. Mas sua contribuição foi importantíssima pro setor.
Vamos aos fatos: em 1901, Santos Dumont ficou famoso ao criar o primeiro balão dirigível, o nº 6. Em 17 de dezembro de 1903, Orville e Wilbur Wright, sem testemunhas, teriam voado 260 metros com o Flyer, uma aeronave com um motor de 12 cavalos, após decolar de uma colina. Há relatos não confirmados que citam um possível sistema que teria auxiliado a decolagem na colina.
A matéria da Folha avança na história: “No dia 23 de outubro de 1906, Alberto Santos-Dumont, mineiro de nascimento, parisiense de adoção, decolou com um aparelho mais pesado que o ar. Seu 14-Bis, uma geringonça de 290 quilos e com um motor de 50 cavalos, subiu a uma altura de quase três metros no Campo de Bagatelle, em Paris, e voou 60 metros. Foi o primeiro vôo feito em público e num aparelho que saiu do chão e pousou por meios próprios (“pousou” em termos; na verdade, o 14-Bis desceu bruscamente e quebrou as rodas)”. O primeiro avião a ser produzido em série foi uma invenção do brasileiro: o Demoiselle, de 1907. Foram produzidos cerca de 300 unidades.
Ou seja, se em 1901 já existia um dirigível, então Aida de Acosta teria mesmo sido a primeira a “sair do chão”, em 27 de junho de 1903 (meses antes dos irmãos Wright, inclusive), em um balão dirigível. Foi a primeira mulher a voar? Ou teria sido Thérèse Peltier, que, sete anos depois de Acosta, de fato pilotou um avião parecido com a ideia que concebemos hoje em dia, decolando, voando e pousando? A resposta é difícil — se é que há uma resposta definitiva.
A lista de mulheres notáveis e desbravadoras é grande e caberia em uma série de matérias, mas gostaria de deixar registrados mais alguns exemplos:
Raymonde de Laroche (1882–1919)
Élisa Deroche, também conhecida pelo pseudônimo de Raymonde de Laroche: a francesa foi a primeira mulher a tirar um brevê (permissão) de pilota, o de número 36 do Aéro-Club de France, em 1910, se tornando naquele ano a primeira mulher a fazer um voo sozinha. Coincidentemente, o feito ocorreu no dia 8 de março, exatos 110 anos atrás. Ela participou de inúmeros shows aéreos. Em um deles, na cidade de Reims, na França, sofreu um acidente aéreo que a afastou dos voos por dois anos, para total recuperação. Ela era amiga de Charles Voisin (1882–1912), um construtor de aviões francês. E Voisin morreu justamente em um acidente de carro no qual estava com Raymonde de Laroche –ela escapou de um fim trágico pela segunda vez e saiu com vida da colisão. Ou seja, mais uma prova que carro é bem mais perigoso que avião, cara panicada, caro panicado.
Bessie Coleman (1892–1925)
Como já falamos lá em cima, a norte-americana foi a primeira pessoa negra (entre homens e mulheres) a se tornar pilota nos EUA, em 1922. O interesse em voar veio após ler sobre a ação dos aviadores na Primeira Guerra Mundial (1914–1918). E ela teve de ir até a França para aprender a voar, pois as escolas de voo norte-americanas não aceitavam, na época, negras e negros entre seus alunos. Aprendeu a falar francês sozinha. De volta ao seu país de origem, se especializou em voos acrobáticos e também em saltos de paraquedas. Suas habilidades como pilota costumavam deixar as plateias impressionadas. E sim, não posso esconder: ela morreu em um acidente aéreo. Mas vamos combinar: ela fazia voos de risco (acrobáticos) nos anos 1920, com a tecnologia muito, mas muito menos desenvolvida que a atual, então vamos apenas pular essa parte…
Ruth Nichols (1901–1960)
A norte-americana conseguiu a façanha de quebrar os recordes mundiais de velocidade, altitude e distância. Foi também a primeira mulher do mundo a receber a licença para operar hidroaviões, tão famosos no início da aviação. Ela tentou ser a primeira mulher a cruzar sozinha o oceano Atlântico, feito alcançado pela mais famosa aviadora pioneira do mundo, Amelia Earhart. A tentativa foi frustrada por problemas técnicos. Em 1939, Ruth fundou uma empresa aérea especializada na atuação em emergências e desastres, tendo atuado, inclusive, na Segunda Guerra Mundial (1939–1945).
Amelia Earhart (1897–1937)
E chegamos à famosa Amelia Earhart. Em 1932, Amelia se tornou a primeira mulher a cruzar sozinha o oceano Atlântico. Em 1935, ela se tornou a primeira pessoa a voar sozinha pelo Pacífico, de Honolulu, no Havaí, a Oakland, na Califórnia, ambas cidades pertencentes aos EUA. Dois anos depois, Amelia e seu navegador Fred Noonan (1893–1937) iniciaram seu voo ao redor do mundo, saindo de Miami e seguindo para o leste. Depois de completar boa parte de sua jornada, eles foram vistos pela última vez na decolagem de Lae, na Nova Guiné, em 2 de julho de 1937. A última posição relatada deles foi próximo às Ilhas Nukumanu, cerca de 1.300 quilômetros depois da decolagem. Depois, sumiram. Inúmeras teorias surgiram de lá para cá, inclusive que Amelia era uma espiã e outra que ela teria concluído a jornada escondida e passado a viver nos EUA com um nome falso. Por anos, as mais aceitas – e críveis – eram a de uma pane seca (falta de combustível) seguida de queda no mar ou então a de um pouso forçado em uma despovoada ilha. Anos depois do desaparecimento, foi encontrado um esqueleto de uma mulher que poderia ser o da aviadora. Só em 2018 chegou a confirmação: aqueles ossos eram, com 99% de certeza, de Amelia Earhart. Ela era verdadeiramente uma inspiração feminina e dona de frases como essa: "As mulheres devem tentar fazer as coisas, assim como os homens tentam. Quando fracassam, seu fracasso deve ser apenas um desafio para as outras ".
Ada Rogato (1910–1986)
E claro que temos exemplos no Brasil também. A pioneira na aviação por aqui é considerada Ada Rogato. Em 1935, ela foi a primeira mulher a conseguir a licença para ser paraquedista e também para pilotar planadores. Ela também foi precursora na aviação agrícola e fez show acrobáticos. Em 1950, cruzou a cadeia de montanha dos Andes, na América do Sul, feito realizado por onze vezes. Ada foi ainda a primeira pessoa a cruzar, em 1956, a selva amazônica em um pequeno avião, sem rádio, em voo solitário, apenas com uma bússola.
E esse, tenho certeza, tem sido o espírito das mulheres ao longo dos séculos. Que a luta de todas as aviadoras aqui citadas e de outras tantas continue ecoando e servindo de inspiração. Uma lista mais completa de pioneiras pode ser lida, em inglês, no site da Women in Aviation International, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao incentivo e avanço das mulheres em todos os campos ligados à aviação
Nota: O rivotravel acredita na igualdade entre os gêneros. Essa foi a primeira parte da série Mulheres no comando (de aviões), mulheres no poder, postada no dia 8 de março de 2020, Dia Internacional da Mulher. Uma segunda matéria, com o atual panorama das mulheres nos céus, será publicada neste site, em data ainda não definida.