Histórias de acidentes não fatais e o que eles têm a nos ensinar #05 — Air Canada 143
Caso você já tenha lido as outras edições da série (links no final desta matéria!), sugerimos pular a introdução abaixo.
A ideia de fazer essa série veio de uma inquietação. Apesar de nosso consciente saber que o avião é um meio de transporte super seguro, ganhando de lavada de outros como carro ou ônibus, ainda assim muitos se veem indo em direção à guilhotina cada vez que entram em uma aeronave. Visualizando aquela estrutura metálica envolta em uma bola de fogo com destino à morte. Acontece que muitos incidentes que ocorrem durante o voo sequer são percebidos pelos passageiros (e isso é tema para uma outra matéria) pois são resolvidos sem alardes pelos comandantes. E mesmo os de maior gravidade, que geralmente levam a um pouso de emergência, muitas vezes acabam sem vítimas fatais — ou mesmo sem feridos. Por isso, para tranquilizar as panicadas, panicados e simpatizantes, resolvi fazer essa série, para desmistificar a ideia segundo a qual todo acidente é fatal. Trazer à tona casos que, devido à perícia da tripulação ou à alta tecnologia do avião, não passaram de um grande susto. “Acidentes que ameaçam a vida (inclusive aqueles que não têm sobreviventes) são muito raros. Um evento desses só ocorre a cada 5,7 milhões de partidas”, afirmou, em 2017, em entrevista à BBC Brasil, Edwin Galea, professor da Universidade de Greenwich — ele é matemático, especialista em engenharia de segurança e desenvolvedor de simulações. ”Digamos que se uma pessoa voasse todos os dias, experimentaria um acidente catastrófico em algum momento dentro dos próximos 2,7 mil anos”, declarou ao mesmo veículo de comunicação Perry Flint, porta-voz da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo, da sigla em inglês).
Vamos então aos fatos!
Sabe aquelas questões das provas do ensino médio, que incluem conversões entre diversas unidades de massa, de distância etc?
Anota essa dica que já, já ela será importante para decifrar os motivos que levaram o voo 143 da Air Canada a pousar em uma pista na qual estava sendo realizada uma prova de automobilismo, em julho de 1983.
Naquele dia de verão no hemisfério Norte, o moderníssimo Boeing 767 (lançado dois anos antes) envolvido no acidente decolou sem problemas do aeroporto internacional de Montreal com destino a Edmonton, ambas no Canadá (como o nome da companhia já entrega). No voo iam oito tripulantes e 61 passageiros. Tudo corria bem quando, no meio do caminho, a 12,5 quilômetros de altitude (e, já que estamos falando de diversas unidades, o equivalente a 41 mil pés), o sistema de alerta do cockpit da aeronave disparou, indicando um problema na pressão do combustível do lado esquerdo. Logo depois, o motor daquele mesmo lado parou de funcionar. Os pilotos Robert Pearson e Maurice Quintal decidiram então alterar o curso da viagem e colocar o Boeing na direção da cidade de Winnipeg. Mas a solução se mostrou inviável momentos depois, quando o segundo (e último) motor, localizado sob a asa direita, também parou de funcionar. Estranhamente, o computador de bordo indicava que havia combustível suficiente para realizar o voo até o destino final previsto inicialmente, ou seja, Edmonton.
Perdendo altitude e se movendo como um verdadeiro planador, sem geração de energia por parte dos dois motores, foi acionado então o mecanismo conhecido como RAT (Ram Air Turbine), uma turbina movida a hélice localizada embaixo da fuselagem do avião. Sabe um catavento? É isso mesmo. Com menos de um metro de diâmetro, ele gira com a passagem do ar. Parece brincadeira (de criança), mas o RAT atua como gerador. Dessa forma, quando há pane seca (ou seja, quando não há mais combustível nos tanques), os principais sistemas elétricos e hidráulicos da aeronave podem ser alimentados e, assim, permanecer em operação. O RAT não gera impulso para o avião, mas é uma forma de manter em funcionamento sistemas que são vitais para o controle do voo. Ele foi fundamental para o pouso em segurança do Air Canada 143. Por esse motivo, o caso ficou mundialmente conhecido como “o planador de Gimli” (Gimli Glider). O comandante Pearson, por sinal, tinha ampla experiência no comando de planadores.
Mas o que é Gimli?
Gimli é uma pequena localidade canadense, na província de Manitoba. Com o avião perdendo altitude rapidamente, o piloto Quintal começou a fazer inúmeros cálculos incluindo a razão de descida (mudança de altitude em relação ao tempo e distância percorrida) do Boeing. O 767 perdia 1,5 quilometro de altitude para cada 18 quilômetros percorridos. Ele viu então que, naquela razão, não iam conseguir chegar a Winnipeg. Foi então que ele sugeriu a base aérea de Gimli, onde já havia realizado pousos durante sua fase de treinamento de piloto, quando atuava na Real Força Aérea Canadense.
O que Quintal (e o controlador de voo que estava acompanhando a odisseia) não sabia era que a base não funcionava mais para operações aéreas.
Além disso, parte da pista de dois mil metros, outrora livre para os caças militares, estava sendo usada naquele dia para um campeonato automotivo de arrancadas. Para piorar, toda a área ao redor daquela enorme reta estava ocupada por campistas em virtude do “Dia da Família” no país. Um baita cenário para uma possível tragédia anunciada.
Você acha que isso esmoreceu Robert Pearson e Maurice Quintal? Sem ter muitas opções, direcionaram as 132 toneladas do Boeing para a pista. Para piorar, o trem de pouso dianteiro abriu, mas não travou (ou seja, colapsaria após o toque no solo, fato que realmente aconteceu). Outro detalhe: a velocidade cada vez menor do avião reduziu a eficiência do RAT, fazendo com que o 767 ficasse cada vez mais difícil de ser controlado. Como dizem: “miséria pouca é bobagem”. Pois quando a base aérea estava próxima, o avião ainda estava muito alto. Pearson teve então de fazer uma manobra conhecida como glissada. Ele inclinou a aeronave para causar mais fricção com o ar, fazendo com que ela voasse “de ladinho”, com ações coordenadas do manche e dos pedais, aumentando a resistência e diminuindo a altura de voo. Tal manobra não é utilizada em pousos “normais”, com os motores funcionando. Mas como Pearson era exímio no comando de planadores, acabou dando certo.
Com muita perícia e mesmo estando acima da velocidade ideal para a manobra arriscada, os dois conseguiram pousar o avião e parar sem chegar a oferecer risco aos pilotos dos carros de corrida — que, surpresos, correram em ajuda levando os extintores de incêndio e auxiliaram no resfriamento dos trens de pouso do avião. Entre os passageiros, apenas ferimentos leves em alguns deles.
Quer um dado curioso? Uma van que posteriormente levou mecânicos da Air Canada para Gimli ficou sem gasolina no meio do trajeto entre Winnipeg e a Base Aérea.
Mas, afinal, o que aconteceu? Como o avião ficou sem combustível? E como o computador de bordo indicava que o precioso líquido jorrava em abundância nos tanques?
A resposta chegou como uma bomba na mesa dos investigadores. Em 1983, o Canadá passava por uma mudança no sistema de unidades do país, alterando o antigo Sistema Imperial para a adoção do Sistema Internacional de Unidades. No primeiro, é usada a libra como uma unidade de massa. No segundo, o quilo. A Air Canada estava começando a fazer essas alterações, e o 767 era o primeiro modelo da frota com o controle de combustível (que é medido em massa) com o novo sistema.
Só que os funcionários da companhia se atrapalharam. Quando foram informados que precisariam abastecer 22,3 mil quilos, acabaram colocando nos tanques 22,3 mil libras, pouco menos da metade do necessário para fazer o avião chegar a Edmonton. Como o cálculo foi feito com base em parâmetros incorretos, o computador de bordo não detectou o erro. Para piorar, houve ainda uma série de erros menores em solo envolvendo a equipe de manutenção, mas o erro principal foi justamente a confusão entre o Sistema Imperial e o Sistema Internacional.
O curioso disso tudo é que, 18 anos depois, uma outra companhia canadenses, a Air Transat, também ficou sem combustível em voo, planando até o pouso seguro. Essa história o rivotravel contou nessa matéria aqui.