Viagens vs. xenofobia: como um vídeo publicitário de uma companhia aérea escancarou o problema em “países perfeitos”
Algumas semanas atrás, uma amiga que já morou na Dinamarca postou um vídeo que me cativou de primeira. “What is truly Scandinavian?” (O que é genuinamente escandinavo?). Esse era o instigante título da campanha audiovisual da SAS, empresa aérea com capital dinamarquês, norueguês e sueco. Foi postado no canal da companhia no Youtube no dia 11 de fevereiro. Horas depois, começou uma chuva de críticas negativas e declarações iradas de políticos de extrema direita daquela que é uma região do globo marcada pela igualdade de gênero, baixa concentração de renda e segurança, entre outros pontos. O vídeo, com quase três minutos, foi tirado do ar e “voltou” no dia seguinte em uma versão reduzida, de apenas 46 segundos. Curiosamente, agora ambos aparecem, lado a lado, no canal oficial da empresa.
Mas o que suscitou a raiva de tantas pessoas? O vídeo maior, hoje, conta com 1,1 milhão de visualizações, 118 mil cliques em “não gostei” e 14 mil em “gostei” — a SAS levantou a possibilidade de ter sido um ataque virtual coordenado para desmoralizar o conteúdo e publicou um comunicado reforçando os valores apresentados.
Acho que o melhor é ver o vídeo original, com áudio em inglês. Há ainda a opção de legendas em inglês ou nas línguas nórdicas. Se você não entende um desses idiomas, tentarei fazer abaixo um resumo.
O vídeo começa colocando em questão justamente a frase que dá nome à campanha. O que é verdadeiramente escandinavo?
A resposta? Nada. Tudo é copiado.
A sequência de belas imagens da natureza, do povo e das cidades dinamarquesas, norueguesas e suecas segue com o texto narrando que aquilo que muitas cidadãs e cidadãos desses países pensam ser genuinamente locais são, na verdade, originais de outros lugares. Democracia? Veio dos gregos (essa é fácil, basta lembrar das aulas de história). As famosas usinas de geração de energia eólica? Tem raízes na Pérsia (atual Irã). A bicicleta, meio de transporte limpo tão usado por pessoas de todas as idades por lá, é invenção alemã. O alcaçuz, apreciado pelos nórdicos, veio da China. E por aí vai.
O vídeo segue listando objetos, comidas e direitos humanos que são tradicionalmente associados aos três países, mas que nasceram fora de suas fronteiras. “Não somos melhores que nossos antepassados vikings”, diz um jovem negro, olhando para a câmera (fato importante que esta matéria abordará mais adiante). A narração segue. “Pegamos o que gostamos no exterior, fazemos ajustes e criamos algo genuinamente escandinavo. Sair pelo mundo nos inspira a pensar grande, mesmo que sejamos pequenos. Toda vez que saímos de nossas fronteiras, adicionamos cores, inovação, progresso, juntando o melhor de tudo a nós”.
Agora o cenário é a ala de desembarque de um aeroporto, com pessoas de diversas etnias e com bandeira da Dinamarca, Noruega e Suécia esperando a chegada de amigos e parentes, com muitos abraços e beijos. O áudio conclui. “Em certo sentido, a Escandinávia foi trazida até aqui. Pedaço por pedaço, por pessoas comuns que encontraram o melhor de nosso lar longe de casa. Estamos ansiosos para ver que coisas maravilhosas vocês vão trazer no futuro”. Aparece a logomarca da SAS. Fim do vídeo.
Fofo?
Não para muita gente, que lotou os canais de comunicação da empresa com críticas negativas. Políticos da extrema direita deram depoimentos agressivos, criticando a companhia por ter “ousado” mexer em temas como identidade e nacionalismo, tão caros aos seus partidos. Até uma ameaça de bomba foi feita à sede da agência de publicidade que criou o vídeo. Para entender um pouco mais do problema, do que está na superfície e também abaixo dela, o rivotravel foi ouvir pessoas dos países envolvidos na celeuma e também especialistas em estudos na área: três pesquisadores do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (Neve) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), referência na área no Brasil; e um professor do Departamento de Estudos Escandinavos da Universidade de Washington, nos EUA.
No título dessa matéria, falei em “sociedade perfeita” assim, entre aspas. Já tive a oportunidade de conhecer os três países, onde passei, ao todo, 15 dias. Parece de fato ser o sonho de muitas pessoas. Mas vamos saber o que os nativos pensam. “Acho que nenhum lugar do mundo é perfeito, mas já visitei e li sobre outros países e devo dizer que acho que a Dinamarca, Suécia e Noruega estão no caminho certo. E com sucesso. Quando se trata de políticos, a liberdade de expressão é muito importante. Mesmo que alguns possam dizer coisas controversas, isso cria um debate e acho que a maioria das pessoas na Escandinávia gosta disso”, afirma o norueguês Alexander Rogne, gerente de vendas. “Nunca pensei na Noruega (ou na Escandinávia) como um lugar perfeito. Certamente, existe uma tradição de uma sociedade bastante igual em termos de direitos civis, renda e acesso à educação e assim por diante. Mas as diferenças aumentaram enormemente, e isso pode ter alterado o cenário político”, acredita o assistente social H.S (ele pediu para ser identificado apenas pelas iniciais), compatriota de Alexander.
A professora Luciana de Campos, pesquisadora do Neve, também lança luz sobre essa questão. Ela ressalta que a segurança pública funciona muito bem. Mas, nas últimas décadas, com o grande fluxo de imigrantes, alguns aspectos mudaram como, por exemplo, o aumento da violência doméstica e também a ocorrência de alguns delitos que antes não aconteciam. A sociedade, afirma a pesquisadora, precisou se adaptar a essa nova realidade e, principalmente, saber resolver esses problemas.
Mas ainda não tocamos no ponto principal da questão, que engloba imigração, crescimento da extrema direita (e o nacionalismo ufanista) e xenofobia. Segundo o dinamarquês Jonas Miller, especialista em softwares financeiros, o ódio aos estrangeiros tem, de fato, ficado mais explícito, especialmente nos últimos anos, com a crise dos imigrantes sírios. Normalmente, ele diz, tanto em partidos de esquerda quanto nos de direita, pessoas e políticos querem ajudar os que chegam ao país, mas discordam das melhores soluções. “Na extrema direita, os imigrantes são estigmatizados e a xenofobia é profunda. Do ponto de vista cultural, isso se deve ao fato de a Dinamarca ser historicamente uma sociedade muito homogênea”, explica.
“Quando tratamos de xenofobia nos países escandinavos, não devemos tratá-la por seu crescimento, ela é um problema constante, e toda vigilância não é o suficiente. Obviamente que seria bater mais uma vez na tecla de que a extrema direita cresce no mundo todo, ainda mais na Europa, onde o contexto histórico e a posição geográfica são facilitadores”, afirma Munir Lutfe Ayoub, pesquisador do Neve. As crises econômicas e as migrações que surgiram nos últimos tempos favorecem ideias que explicam de maneira simples — “por isso mesmo sedutora”, ressalta — os problemas complexos que enfrentamos nos dias de hoje. “Como brasileiros, bastaria olhar para nosso próprio umbigo para compreender que essa é uma realidade global que ganhou muita força, ameaçando a democracia, o livre pensar e a convivência das múltiplas culturas”, compara.
Na opinião do sueco Magnus Simonsson, secretário-geral de uma ONG sediada em Estocolmo, a xenofobia sempre existiu, “mas agora as pessoas estão mais abertas com suas más visões. Eles se sentem livres para dizer coisas ruins porque os extremistas de direita estão ganhando apoio. Eles não gostam de imigração, jornalismo livre, igualdade entre homens e mulheres ou direitos LGBT”, afirma.
Sobre imigração, o dinamarquês Kristian Næsby, professor-visitante do Departamento de Estudos Escandinavos da Universidade de Washington, faz uma provocação. “A Dinamarca está presa no que chamamos de dilema progressivo. Um país pode ter uma rede de segurança social muito forte, benefícios generosos e fronteiras abertas? Nenhum país no mundo moderno fez isso. Todos os países tentam encontrar esse equilíbrio”, diz o especialista.
A professora Luciana de Campos parece ter uma visão mais positiva. “Hoje o que se vê na Escandinávia é uma população que, de certa maneira, se adaptou muito bem a essa nova realidade da vinda dos imigrantes: é mais fácil encontrar um restaurante de comida do Oriente Médio — seja ele pequeno ou grande — que sempre recebe um grande número de escandinavos que apreciam e se adaptaram a comer essa comida no seu dia a dia, do que um restaurante que sirva a típica comida dinamarquesa, por exemplo”, diz.
Nesse cabo de guerra entre receber bem quem chega ( “os noruegueses gostam de se ver como muito tolerantes e abertos”, afirma H.S) e a xenofobia, onde entra a questão central do vídeo, ou seja, que nada seria genuinamente escandinavo? “Li um artigo interessante segundo o qual a verdadeira razão pela qual as pessoas estavam chateadas era porque o comercial dizia que nada é realmente escandinavo, absolutamente nada. Toda a nossa cultura é apenas um roubo cultural, como sugere o comercial? Tenho minhas próprias opiniões sobre essa afirmação, mas imagine se alguém dissesse que a cultura brasileira não é brasileira. Como você reagiria?”, questiona Jonas. A campanha pode ter um efeito positivo em alguns espectadores que realmente acreditavam nesses estereótipos e agora precisavam reconsiderá-los, afirma H.S. “Eu sou bastante cético, no entanto. Temos um enorme problema com a política de direita, que fica maior e mais assustadora a cada dia que passa. E a experiência mostrou que muitas pessoas não querem que seus pontos de vista sejam desafiados. Muitos da direita ainda mantêm suas crenças destrutivas”, conclui o assistente social norueguês.
A pesquisadora Luciana de Campos vai além. Ela ressalta que a questão é complexa, mas acredita que a reação negativa dos integrantes da extrema direita se deve principalmente ao fato de o vídeo da SAS ter colocado um homem negro falando dos vikings como sendo seus antepassados, sendo que essa herança é constantemente utilizada pelos extremistas da direita para reforçar e referendar a sua suposta superioridade aos demais. Johnni Langer, colega da pesquisadora no Neve, concorda. “Quanto ao vídeo, o problema dele, aos olhos de um referencial mais conservador, é mostrar que populações estrangeiras, como asiáticos e africanos, podem ser considerados escandinavas também”, diz.
Kristian Næsby também toca nessa questão: “O comercial está atacando deliberadamente coisas e itens simbólicos que são considerados inerentemente dinamarqueses, noruegueses e suecos, alegando que nada é verdadeiramente escandinavo. E embora possa ser verdade que essas coisas não se originam na Escandinávia, esse não é o ponto. O ponto da direita é que isso representa um ataque à identidade dinamarquesa, que deve ser protegida politicamente”, explica. Kristian acredita que a mensagem geral do vídeo é positiva e forte — ou seja, o que faz os escandinavos serem escandinavos não são as almôndegas ou o pão de centeio, e sim a curiosidade e capacidade de sair para o mundo, buscar inspiração e trazer as ideias para casa, ajustá-las e alterá-las, e depois torná-las escandinavas. “Eu acho que é uma mensagem boa e positiva. Mas eu também entendo as críticas. O comercial é excessivamente simplista, seu argumento é reducionista e deliberadamente provocativo”, diz.
Na entrevista, Kristian cita um artigo assinado por um membro da extrema direita publicado em um jornal dinamarquês. Ele traduz: “o interessante aqui é que a SAS mostra sua própria ignorância. Ao vincular a cultura dinamarquesa apenas a coisas materiais como árvores de natal e almôndegas, a SAS mostra uma total falta de compreensão da profundidade e do histórico dessas coisas. A nacionalidade é muito maior e muito mais importante — tem forte origem na história e na cultura, que são significativas para a maioria das pessoas. É a soma indefinível de todas as nossas vitórias e derrotas, nossa interconexão cultural e comunidade. É um senso de espírito que, apesar de sua invisibilidade, está sempre presente. É muito difícil definir, mas isso não significa que não exista”, diz o texto. ”Não é que eu concorde com essa afirmação, mas entendo de onde o pensamento dessa pessoa vem, certo?”, diz o professor-visitante da Universidade de Washington.
“Eu acho o vídeo engraçado. Creio que aborda a coisa mais escandinava de todas, nosso senso de humor e nossa capacidade de tirar sarro de nós mesmos. E acho que eles (a SAS) deveriam ter mantido apenas o original (no canal oficial da empresa no Youtube)”, afirma o empresário dinamarquês Victor Kruse, que é dono de uma produtora de vídeos. A versão mais curta tirou pontos “sensíveis”, como a afirmação segundo a qual “nada é escandinavo” e também o jovem negro falando do passado viking. Já o norueguês Alexander acredita que a empresa aérea fez bem em lançar uma segunda versão. “Acho que eles perceberam que a mensagem que estavam tentando transmitir foi longe demais”. No final, o que temos como reflexão, afirma Johnni Langer, é que a questão da imigração ainda é um assunto muito complicado e está longe de ter uma saída ou solução para os escandinavos em geral.
Mas e quanto à mensagem final do vídeo, que, para mim, é justamente a parte mais interessante (“Em certo sentido, a Escandinávia foi trazida até aqui. Pedaço por pedaço, por pessoas comuns, que encontraram o melhor de nosso lar longe de casa”). O sueco Magnus tem alma de viajante e já esteve em 127 países. Ele deu a entrevista ao rivotravel durante suas férias, em Moçambique. De lá, foi para sua segunda visita à Suazilândia, um reino na fronteira com a África do Sul. Desde o ano passado, o país se autoproclama eSwatini (com essa grafia), abandonando o antigo nome da era colonial. “Temos recebido pessoas de todo o mundo. Quando se trata de coisas que tiramos do exterior, gosto mais das ideias (democracia e liberdade) e da comida (macarrão, falafel etc). Aprendi que, em geral, você pode confiar nas pessoas. Quase todo mundo é legal e quer ajudá-lo”, afirma o sueco, que deu a entrevista no dia 4 de março — ele já está em casa, em Estocolmo, após passar por dificuldades para embarcar em Joanesburgo, na África do Sul, por conta do cancelamentos de voos em decorrência da pandemia do novo coronavírus (assunto de nossa última matéria — leia aqui).
Magnus é um grande entusiasta do couchsurfing, comunidade mundial de pessoas que gostam de viajar e ficar na casa de participantes locais (sem pagar nada por isso) ou apenas marcar de tomar um café, um drink ou dar uma volta pela cidade com os moradores (já escrevemos sobre esta rede social aqui no rivotravel). “Quero que a Suécia continue sendo um país aberto. Devemos sempre tentar aceitar mudanças. A Suécia está sempre mudando e eu gosto disso! O problema é que as pessoas querem que a Suécia pare de mudar”, afirma.
Basta olhar para a história mundial e ver que nada é imutável. Impérios surgiram e caíram, ditadores tomaram o poder e foram derrubados. Familiares nasceram e morreram. Amizades são feitas e rompidas. Namoros e casamentos começam e terminam. Doenças nos alarmaram e depois achamos a cura. Pro bem e pro mal, tudo muda, o tempo todo.