Uma cena congelada por séculos
Ana corria puxada pela mão por seu marido, Marcos. As pedrinhas do caminho da Vila Borghese entravam pelas laterais do sapato rasteiro e machucavam seus pés.
“Calma, Marcos. Você não comprou os bilhetes pela internet? Para o primeiro horário? Ainda falta meia hora”, disse.
“Eu sei, amor. Mas quero fazer uma surpresa para você”.
Marcos sendo Marcos, pensou. Fazendo as coisas sem consultá-la. Tudo o que ela mais queria fazer nas últimas horas em Roma era dormir até mais tarde e tomar um delicioso café da manhã.
Chegaram então ao imponente palazzo que abriga a Galleria Borghese. Funcionários, ainda lentos e mal aquecidos pelo parco sol da manhã primaveril de Roma, entravam por uma porta lateral do edifício. Ana arrumava os cabelos esvoaçados enquanto tentava recuperar o fôlego.
“Olha, é melhor o Papa estar me esperando aí dentro”.
Marcos apenas sorria e controlava o relógio. Aos poucos, pequenos grupos de turistas foram chegando e tomando seus lugares atrás do jovem casal, fazendo uma fila indiana. A maioria composta por asiáticos. Ana percebeu quando o homem atrás olhou para sua bunda e comentou algo com o amigo. “Did you lost something here?”. Perdeu algo aqui? Os dois, envergonhados, fingiram não entender inglês.
Às nove horas, o porteiro, já com cara de tédio, abriu o portão e pegou os bilhetes dos dois. Marcos, então, agarrou novamente a mão de Ana e saiu em disparada, passando direito pelo salão principal em direção a uma outra sala, menor. Apesar do mistério, ele parecia saber bem o que estava fazendo. As pedrinhas continuavam a machucar as solas de seus pés.
Passaram por mais duas salas. Tintorettos, Caravaggios, todos iam ficando para trás, transformados em borrões pela velocidade com que a dupla passava. Ana fez menção de diminuir o passo em uma obra de Tiziano que particularmente lhe chamou a atenção, mas foi repreendida pelo marido. “Depois você vê”, respondeu afobado. Ana fez menção em protestar, aquele Tiziano era realmente intrigante, mas já estava novamente sem fôlego. E, era preciso dizer, a curiosidade falava mais alto. Por fim, subiram uma estreita escada em caracol na extremidade leste do palazzo. Deram de cara com um grande cômodo cheio de quadros e uma única estátua em mármore ao centro.
“Quis que você tivesse uns minutos a sós com ela. Vai lá”.
Aquela visão era rara, em uma cidade abarrotada de turistas. Um salão vazio. Começou a andar devagar, como se aquela cena necessitasse de uma reverência, uma entrada teatral. Chegou perto da escultura. Parecia mais uma das mil estátuas que já havia visto nos dias anteriores. Um ser, aparentemente mitológico, segurava uma mulher, que tentava escapar a todo custo. Uma figura masculina segurando à força uma mulher. A primeira impressão foi de asco. Repulsa. Quantos séculos aquela estátua deveria ter? Por um segundo, mas sem que tomasse consciência, gerações de mulheres violentadas passaram por sua alma. As pedrinhas feriam os pés de Ana.
Ela começou, então, a circundar a obra.
Até que chegou à coxa da mulher. A mão do homem segurando a coxa da mulher. Pressionando como se fosse carne. Era um aprisionamento. A mão impedia a fuga. Impunha a força masculina.
Aquela mão merecia ser cortada. Jogada no rio Tibre e esquecida.
Mas era impossível tirar os olhos daquela mão. Daquela coxa que reluta, que resiste, que insiste em sua liberdade. Seria sublime mesmo se fosse uma cena de um filme, com pessoas reais. Mas era mármore. Ana não se deu conta, mas suspendeu a respiração por dois segundo e, sem que percebesse, a boca abriu alguns milímetros. As pupilas acompanharam o movimento.
Como? Como era possível aquilo? Não era massa de modelar. Nem mesmo massa de modelar produziria aquele efeito. Era puro mármore. Duro, exigente, cheio de caprichos.
Ana fixou os olhos como se quisesse captar cada centímetro daquela delicada parte. Sentia uma estranha energia emanar daqueles poucos centímetros quadrados. Era como se o resto da estátua pouco importasse. Como se não fizesse falta. Ou se estivesse ali apenas para justificar aquele pedaço tão carregado de drama. Poderia, naquele momento, chegar um maluco com um martelo e fazer aquela obra em pedacinhos, contanto que aquela coxa fosse salva. A luz matutina entrava pelas enormes janelas e iluminavam todo o grandioso ambiente, mas é como se buscassem ali aquele ponto exato no mármore branco. E apenas para a apreciação de Ana, que já não estava mais em 2019, e sim na Roma do século XVI. Ao lado de Bernini, coberto de pó de mármore, se transformara em testemunha da apoteose daquele Rapto da Prosérpina.
Ana, a ateia, a racionalista, então, acreditou na presença de Deus. Uma lágrima quase escorreu por sua face direita, mas não, suas glândulas não quiseram trair a moça. Muito melodramática, diria de si mesma. Mesmo assim, os olhos viraram dois pequenos lagos. Sentia-se confusa. Ana, que se considerava tão feminista, tão engajada em temas caros às mulheres, aos direitos reprodutivos, ao fim da cultura do estupro, aquela Ana estava hipnotizada pela mão de um abusador. Ficou incomodada. Sabia que não deveria se comover com aquilo. Mas era impossível. Era mais forte que suas vivências, suas lutas e suas leituras.
Aos poucos, vozes ao fundo foram surgindo, dando sinais da chegada dos demais turistas, que parariam por uns segundos em frente à estátua, tirariam fotos e seguiriam a jornada rumo aos demais salões da Galeria. Ana continuava olhando fixamente para a coxa. Aquilo não era humano. Era divino. Era divino. Definitivamente não havia outra explicação.
Marcos, então, chegou por trás e abraçou a esposa. “Sabia que você ia gostar”.
Ana, sem mover o tronco ou a cabeça, levantou o braço direito e pousou dois dedos na frente dos lábios de Marcos. Não queria saber nada daquilo, não queria que mundanas informações dissolvessem aquela experiencia sensorial. Aquela estátua não era dali. Não foi feita. Sempre existiu.
Ela estava atordoada. Não quis ver o restante do museu. “Vamos embora daqui”, disse.
Se tivesse de refazer mentalmente o caminho entre o Palazzo e o local onde estavam hospedados, Ana não seria capaz. Lembraria vagamente do barulho das sapatilhas contra as pedrinhas, que continuavam entrando pelas laterais e machucando as solas dos pés. Mas isso não a incomodava mais. Tudo parecia diáfano como a luz que iluminava a estátua.
Quando chegaram ao hotel, foram direto para a recepção, onde estavam guardadas as malas já feitas. O taxi, o trânsito de Roma, as ruas enlameadas com suas carroças puxadas a cavalo, cheirando a estrume. As partículas de poluição bailando nos feixes de luz, junto ao pó de mármore. A mão cheia de calos do motorista. As mãos hábeis, feridas e delicadas de Bernini.
No aeroporto, enquanto esperavam na fila do check-in, Ana pensou em pegar o celular e pesquisar mais sobre aquele artista, sobre aquela obra. Queria saber tudo o que já havia sito escrito sobre eles, todas os artigos técnicos, todas as dissertações e teses. Mas se deteve. A imagem daquele leve toque na coxa duríssima ainda era viva demais. Estava completamente absorta. Mal teve forças para se encostar em um canto do caótico aeroporto e tirar as pedrinhas de dentro do sapatos.
A passagem aérea de primeira classe para a lua de mel, presente dos sogros de Ana, permitiram um rápido acesso ao avião. “Um luxo que os mortais não têm”, brincou Marcos. Luxo, mortalidade. Acesso ao belo... Um mendigo romano poderia ter aquela experiencia? Poderia pagar pelo caro ingresso do museu? Não havia questão que não rondasse a cabeça de Ana naquele momento. Do feminismo ao elitismo das artes.
Quando já estavam acomodados nas enormes e macias poltronas do avião, arrumadas com travesseiros com penas de ganso, Ana virou para o marido e disse um tímido: “obrigada por ter me proporcionado isso”. Para Marcos, ela estava se referindo aos caros bilhetes do avião, que, àquela altura, já se preparava para decolar.
A subida foi tranquila. Ana olhava Roma pela janela e sentia que a cidade retribuia o gesto. A luz vespertina, dourada, ressaltava o tom ocre das construções. Imaginou Bernini, com seus equipamentos, andando por aquelas ruas, que ficavam cada vez menores e mais estreitas, envoltas em nuvens e fumaça da lenha de cada casinha daquele microcosmo.
O primeiro solavanco do enorme Boeing 777 não assustou Ana. Na verdade, estava tão perdida em seus pensamentos que nem o percebeu. O seguinte, que derrubou metade do prosecco da taça no chão, foi mais pertubardor. Ana buscou o olhar de Marcos, o olhar geralmente tranquilizador, que agora estava petrificado. “Senhoras e senhores passageiros, estamos passando por uma área de turbulência”, avisou o comandante. Ana ficou, então, apreensiva. Queria ver todas as obras de Bernini que pudesse, espalhadas nos principais museus do mundo. Onde tivesse uma instituição que abrigasse uma obra do mestre, lá ela queria estar. E, sobretudo, queria voltar a ver o Rapto da Prosérpina. De manhã cedo, a primeira da fila. Olhar para aquela coxa e abstrair dela alguma verdade suprema que ainda não alcançava direito.
O terceiro chacoalhão fez tremer toda a aeronave. Ana sentiu medo. Medo de acabar ali a medíocre vida que levara até então. Percebendo a tensão da noiva, Marcos pousou a mão na coxa da esposa. O olhar da esposa era de pavor.
“Tira a mão da minha coxa", pediu, em voz baixa, porém incisiva, a mulher. Marcos não entendeu o pedido, mas obedeceu.
Sentindo a pressão dos dedos grossos de Marcos se afastando de seu corpo, Ana jogou a cabeça para trás. Tudo ficaria bem. O avião passaria por aquela zona de trepidação, entraria em outras, eles pousariam em segurança no Rio de Janeiro. Pegariam um taxi, chegariam em casa, desfariam as malas, tiraria o resto das pedrinhas que teimavam em se esconder nos cantos dos sapatos, dariam os presentes inúteis comprados na viagem. Retornaria ao trabalho, entraria e voltaria inúmeras vezes de férias. Veria e revisitaria as mesmas estátuas do artista italiano. Envelheceria.
Mas Bernini seria eterno. E a esperança de Ana era que, até o fim de sua vida, ela pudesse decifrar a verdade por trás daquela obra.
Nota: a estátua O Rapto da Proserpina, de Gian Lorenzo Bernini, é exibida na Galleria Borghese, em Roma. Os ingressos podem ser comprados online, agendando dia e hora da visita, clicando aqui. É possível ainda comprar na hora, na bilheteria, mas a entrada fica sujeita à lotação, super controlada, do espaço.