Positividade tóxica — tem coisas “do bem” que nos embarcam em uma viagem do mal
Você possivelmente já ouviu falar na expressão “positividade tóxica”. Ou mesmo já sofreu seus efeitos ou foi causador de dor em outra pessoa sem saber. E qual a ligação dela com a aerofobia? Pois saiba que esse assunto é tão forte e pesado que levei quase três anos entre fazer as entrevistas para esta matéria e, de fato, escrevê-la — mas isso eu conto lá no final.
Mas o que é a tal positividade tóxica?
Para uma melhor definição, vale ouvir a psicóloga e doutora em psicologia Cynthia Perovano. Ela explica que a positividade tóxica é a tentativa de forçar uma sensação positiva a qualquer custo. "É uma postura invalidante diante do sofrimento e da dificuldade do outro, desrespeitando ou desqualificando o que ele ou ela sente", prossegue a especialista. Apesar de muitas vezes partir de uma boa intenção, essa imposição de que se deve ser feliz o tempo todo ignora o sofrimento, a tristeza, as emoções negativas, a diversidade da vida e todas as suas variações que fazem parte da experiência humana.
A professora faz parte do Grupo de Estudos e Práticas em Psicologia Positiva da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Em 2020, eles montaram o Curso de Extensão Psicologia da Felicidade e do Bem-estar, com o objetivo de apresentar para a população em geral, de forma acessível, o conhecimento construído na área da Psicologia Positiva, “pois entendemos que nesse momento que todos estamos enfrentando (nota: esta entrevista foi feita no período pandêmico), compreender as próprias emoções, pensamentos e comportamentos pode ser um passo importante para lidar melhor com os possíveis desdobramentos do distanciamento social e da pandemia”. Entre os temas abordados estava justamente o da Positividade Tóxica.
Para o professor e psicanalista Rafael Werner, a expressão “positividade tóxica” está associada, em geral, a uma cultura que forma seu ideário civilizatório a partir de uma imagem de sucesso e perfeição, que precisa ser mantida a todo custo e a todo tempo como símbolo de uma vida feliz. “Os métodos e estratégias para se alcançar a vida perfeita envolvem a recusa de sentimentos ‘negativos’, tais como nossas fraquezas, limitações e medos. A difusão dessa ideia de felicidade, potencializada nas redes, gera uma sociedade incapaz de lidar com as tensões e conflitos inerentes e fundamentais à própria vida”, pontua Rafael. O resultado dessa visão de mundo gera adoecimento psíquico e infelicidade.
Uma ajuda que não ajuda
No campo do medo de voar, a positividade tóxica também faz suas vítimas. A estagiária em comunicação Ana Cláudia Sandoval afirma ter muito medo de voar, mas está em tratamento psicológico para, pelo menos, atenuar os sintomas. Ela conta que sempre escutou frases tidas como “positivas” pelos outros, não só relacionadas ao avião e ao medo de voar, mas em vários aspectos. “Essas pessoas e frases mais atrapalham do que aliviam ou acalmam o panicado. Já escutei algo como: ‘Você está sendo tão negativa que é capaz de o avião cair’, ‘Você está pensando tanto no avião cair que está vibrando nessa frequência e atraindo isso; precisa pensar positivo’ — (já ouvi) coisas assim”, desabafa Ana, acrescentando que escutou tais falas da própria família, que acredita em energias e forças sobrenaturais. "Eu respondia que isso não ajudaria em nada. A culpa não era minha de sentir medo, e eu não conseguia controlar ‘as minhas energias’ ou me acalmar. É algo além do nosso controle. Me senti desvalidada, infantil, medrosa. Me senti até responsável, se ocorresse alguma fatalidade, porque, segundo essas pessoas, seria de fato minha culpa”, diz.
A professora de Relações Públicas da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Emanuelle Rodrigues também é panicada e conta que também já ouviu frases terríveis. “Tenho a impressão, inclusive, de que isso tende a partir de pessoas com algum tipo de religiosidade ou grau de espiritualidade. Parece-me uma relação interessante de se estabelecer e fica, em certa medida, expressa em suas falas”, observa. Emanuelle conta que quando a pessoa já a conhece, geralmente fala frases como "pensar em coisas boas", "você atrai o que você pensa", "energia positiva", "aproveite o tempo para descansar", "pense no destino que você esquece que tem medo", coisas nesse sentido. “E quem não me conhece e de alguma forma sabe ou percebe que tenho medo, fala as mesmas coisas, mas costuma acrescentar também 'confie em Deus', 'pense que no céu você está mais perto de Deus', 'cada um tem sua hora', 'faça uma oração para se acalmar', 'tenha fé' etc.”
Segundo o psicanalista Rafael Werner, que tem trabalhos acadêmicos sobre o tema desta matéria do rivotravel, “a cultura da positividade tóxica e a religião cristã, por exemplo, são formas de lidar com a negatividade, mas apresentam distintos posicionamentos. A cultura do excesso de positividade parece envolver uma religiosa entrega do sujeito à ideia de que é possível ser feliz quando seguimos à risca as estratégias preconizadas por profissionais ‘especializados’ na arte do sucesso. Esse comportamento expressa a tentativa de substituir o mal-estar (negatividade) que sentimos diante de nossas dores, frustrações e incertezas, por um sentimento de segurança (positividade) em relação ao alcance de uma vida plena e feliz quando seguimos firmes em nossos ‘propósitos’”, afirma. Ele acrescenta ainda que essa visão de mundo parece ignorar as condições impostas pela realidade na qual nos encontramos. “Nessa mesma esteira, à luz de uma perspectiva crítica, o cristianismo foi acusado de desempenhar um papel alienante, que retira do sujeito a perplexidade diante de suas péssimas condições materiais, eliminando, com isso, toda possibilidade de transformação do mundo no qual vivemos e nos relacionamos", resume.
A professora Cynthia traz outros interessantes elementos sobre o tema: “Mesmo que a pessoa tenha uma crença espiritual ou religiosa, e confie que há algo maior que a sustente e ampare, ela pode ter dúvidas, inseguranças e temores. Se essas expressões são utilizadas sem acolhimento e conexão com a dor e sofrimento do outro, com suas dúvidas e incertezas — apesar do objetivo de fazer a pessoa se sentir bem — podem ser invalidantes e, portanto, serem consideradas como positividade tóxica.” Ela dá como exemplo uma pessoa sofrendo porque um ente querido está hospitalizado em estado grave e alguém lhe diz: “não fique assim, tenha fé”. Ao dizer “não fique assim”, ou seja, “não sofra”, o sentimento da pessoa não é acolhido, e isso é muito doloroso. A pesquisadora diz que podemos dizer algo similar como “Imagino que seja mesmo muito difícil essa situação. Você pode contar comigo. Tenha fé que tudo vai dar certo” — uma fala semelhante, mas que não desconsidera que o sofrimento sentido naquele momento também é importante, assim como o é o elemento “fé”.
Segundo o professor Rafael Werner, as falas tóxicas dirigidas a um sujeito que sofre de aerofobia passam pela esteira comum de diminuir ou trivializar o medo, tornando as fragilidades diminutas, sem importância e facilmente transponíveis. A afirmação “o medo é psicológico” parece retirá-lo da condição de real experiência humana, além de expressar um preconceito acerca de fenômenos que transcorrem no âmbito psicológico como algo de pouco ou nenhum valor.
bobagem? Parece que não
Há quem ache tudo isso uma bobagem. Mas certamente não é para quem sofre com a positividade tóxica. “Costumo ouvir frases assim antes de embarcar e dentro do avião, que é quando fico mais nervosa e ansiosa, revisando todos os cenários possíveis e dando adeus pra todos os meus familiares”, ressalta Ana Cláudia. Ela nunca chegou a revidar tais frases “motivacionais”. “Nunca cheguei a dizer diretamente que essas frases pioram (a aerofobia), porque acabava me sentindo culpada demais por ter medo e não conseguir controlar a própria mente. Me sentia mal pelas pessoas terem que lidar comigo tendo um ataque de pânico, e nem conseguia responder”, diz.
Emanuelle prossegue com seu relato: “Sou ateia e o que pode me acalmar em uma situação assim é escutar argumentos objetivos, experiências positivas de outras pessoas que já tiveram medo e assuntos técnicos sobre aviação que reforcem que esse medo é, em grande parte, fruto da minha imaginação. As pessoas não precisam saber as crenças ou características das outras para terem bom senso. Por exemplo, se alguém quer ajudar, pode perguntar se acredito em alguma coisa ou o que geralmente faço para me acalmar nessas situações; assim, pode ajudar de algum modo”, conta.
Segundo a professora Cynthia, a positividade tóxica pode gerar um efeito de desconexão, tanto com o outro quanto conosco mesmos. Na relação com o outro, essa imposição de um ponto de vista positivo invalida a dor alheia, sem acolhimento, conexão ou respeito. Na relação conosco, nos impede de fazer as pazes com nosso passado, discorre a professora, na medida em que nos desconecta da experiência e, assim, das nossas possibilidades de aprender com nossos erros e sentimentos. A fobia é um sentimento exagerado de medo e aversão por algo ou alguém que não é racional, observa a psicóloga. “Então, a pessoa que tem fobia precisa poder falar sobre isso, sobre esse medo, para tentar entender e organizar o que é isso que ela sente e, assim, criar estratégias para lidar melhor quando ele surgir, até para poder avaliar a necessidade ou não de um acompanhamento profissional. Para isso, é preciso estar atento a si mesmo, reconhecer seus sentimentos e emoções negativas e se permitir receber acolhimento de seus pares. Assim, a positividade tóxica nessas situações, ao invalidar e desconsiderar esses sentimentos e emoções negativas, afasta a possibilidade de compreender essa experiência e de decidir o que se pode fazer ou aprender com ela”, explana.
O outro lado — ex-praticantes
Para esta matéria, entrevistei também “o outro lado”: alguém que já praticou positividade tóxica, mas que hoje diz estar livre do mal. A dona de casa Clarissa Menna diz que já teve uma fase “jovem mística” que durou cerca de três anos. O interesse por esse universo começou devido a questões existenciais. “Eu procurava um sentido para a vida, uma explicação do porquê estamos neste mundo. Não lembro exatamente quando isso começou, mas lembro que passei a acreditar que a espiritualidade e a física quântica eram uma coisa só. Eu acreditava que as pessoas estavam unidas por uma suposta energia universal e que era possível alterar essa energia, vibrando em frequências diferentes. Supostamente, se você está triste, ansioso ou com medo de algo, estaria vibrando em uma frequência baixa e atraindo situações ruins; e, se está feliz ou grato, estaria vibrando em uma alta frequência e atraindo situações boas e pessoas que também vibram ‘alto’. Logo, você não deve deixar sua ‘frequência diminuir’ com sentimentos ditos ‘negativos’.” Ela lembra de frases que costumava dizer, como “você é responsável pela forma como se sente”, “você pode controlar seus sentimentos e reações” e “não vibre na frequência do medo! Vibre na frequência do amor”. Hoje, diz ter vergonha de já ter dito tais expressões.
Em 2020, com a pandemia, Clarissa passou a assistir a vídeos que a fizeram repensar o assunto. “Entendi que a física quântica e a espiritualidade não se relacionam de forma alguma. Que não é possível alterar nossa frequência e que toda essa positividade que eu acreditava não passa de um marketing que dominou as redes sociais nos últimos anos e uma desculpa para vários ‘terapeutas’ e ‘coachs’ venderem cursos de como ser próspero e feliz pensando positivamente e sendo grato por absolutamente tudo o que te acontece. Entendi que várias terapias alternativas que eu acreditava serem sérias não passam de pseudociência pura. Aprendi a ter mais senso crítico e questionar mais”, relata a dona de casa, que começou a criar “desafetos online” quando passou a criticar a positividade tóxica e todo o mundo de terapias alternativas que prometem “curas simples para problemas complexos”, como ansiedade e depressão.
Concluo este texto com uma frase do psicanalista Rafael Werner que, creio eu, resume a questão: “A exacerbação da positividade pode levar à neutralização da capacidade de sermos empáticos. É fundamental reconhecer a importância do amor como farol das relações humanas, onde a escuta e a comunicação fazem da diferença e das múltiplas visões de mundo uma potente experiência da coletividade. O reconhecimento das dores individuais abre a possibilidade para resolvê-las”.
* Última nota — três anos depois…
No início da matéria, eu disse que levei quase três anos entre fazer as entrevistas e tomar coragem de escrever esse texto. Positividade tóxica já me fez muito, muito mal — e vinda de pessoas amigas. Além de aerofobia, sou diagnosticado com depressão bipolar. Apesar de ser atendido por ótimas especialistas, eu ouvia pessoas conhecidas dizendo coisas como “pare com isso”, “você é maior que isso” e coisas assim. Já escutei muitas atrocidades sobre isso, mas o ápice de meu trauma com o assunto aconteceu em 2016. Estava com uma amiga em uma praia em Los Angeles, nos EUA. Era bem cedo, aquele clima de “verão na Califórnia”, ninguém ao redor. Até dois golfinhos bem perto da beira da água apareceram — veja só que paisagem idílica! Pois foi nesse cenário que a tal amiga (de longa data) começou a metralhar positividade tóxica, praticamente me culpando por ter depressão. Fiquei tão mal que saí às pressas dali, me vesti correndo, mesmo cheio de areia (eu odeio a sensação da pele do mar e a roupa limpa), peguei o carro alugado e fui para o incrível Museu de Arte de Los Angeles (LACMA). Lembro que andava pelos corredores me arrastando, sentindo como se carregasse um enorme peso. E olha que eu amo museu! Mas naquele instante eu queria desaparecer. Decidi, então, sair dali e ir rumo a uma das cabeceiras da pista do aeroporto internacional da cidade (eu morro de medo de voar, mas amo aviação). E foi ali, sentado sob uma frondosa árvore, que vi lindas aeronaves pousando. Ali encontrei minha paz, por mais paradoxal que pareça.
Na pandemia, a tal amiga fazia vídeos diários, extremamente feliz. Nada contra quem usa drogas (afinal, eu uso psicofármacos), mas ela parecia estar usando algo muito forte. Quando, um dia, ela desacreditou o trabalho da ciência, vi que era hora de dar adeus àquela amizade. Podemos não conseguir barrar a positividade tóxica na fila do supermercado, na ceia de Natal ou na comemoração da firma, mas, nas redes sociais, um belo block é até terapêutico.