O rivotravel assistiu: Vidas ao vento — Uma animação na Netflix para se emocionar e ver os aviões com outros olhos (e uma sobremesa de quebra)
“Devo ou não recomendar este filme para as leitoras e leitores panicados do rivotravel?”. Essa dúvida me acompanhou por alguns dias depois que eu assisti à animação japonesa Vidas ao Vento. A dúvida era justificada: no belo trabalho do renomado Hayao Miyazaki inspirado na vida do engenheiro conterrâneo Jiro Horikoshi acontecem alguns acidentes aéreos. Mas acho que é um filme interessante para quem sofre de aerofobia, e explico a seguir.
Mas antes vamos saber um pouco mais sobre o longa, que está em cartaz atualmente na Netflix brasileira. Em fevereiro, a plataforma de streaming começou a colocar em seu catálogo praticamente todos os filmes do estúdio Ghibli, como A Viagem de Chihiro, O Castelo Animado, Meu Amigo Totoro e Princesa Mononoke. Entre eles, Vidas ao Vento, que entrou na lista em abril. O Ghibli foi fundado em 1985, por vários artistas, entre eles Hayao Miyazaki, que já trabalhava com animações e decidiu abrir seu próprio estúdio, pois estava insatisfeito com o que vinha produzindo e queria criar uma animação de alta qualidade que explorasse em profundidade a mente humana e ilustrasse as alegrias e dores da vida.
O próprio nome Ghibli tem relação com o mundo da aviação. Esse era o nome com o qual, na Segunda Guerra Mundial, os pilotos italianos que sobrevoavam o norte da África batizaram o vento quente que vinha do deserto do Saara. O termo acabou sendo usado também para designar os aviões de reconhecimento que sobrevoavam a região. Miyazaki, que sempre teve paixão por aviões antigos, cunhou a frase: “façamos soprar um vendo quente no mundo da animação japonesa”. A pronuncia da palavra, que em italiano é lida como “guibli”, virou “jee-blee”.
Antes de falar do filme, é bom traçar algumas linhas sobre seu protagonista. Jiro Horikoshi é um personagem real e Vidas ao Vento é uma versão romanceada de sua história. O engenheiro aeronáutico nasceu em 1903, em Fujioka. Após os estudos, tornou-se projetista-chefe da equipe que criou caças que foram parcialmente responsáveis pela expansão japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Seu projeto mais conhecido é o Mitsubishi A6M Zero, avião de caça de longo alcance, usado pela Marinha Imperial Japonesa. O Zero foi fortemente usado durante os anos finais da Guerra do Pacífico, principalmente em missões kamikaze, nos quais os pilotos japoneses colidiam propositalmente a aeronave contra os alvos. O A6M foi desenvolvido à pedido dos militares nipônicos, e a recomendação por um avião mais leve do que era utilizado até então era clara, o que fez com que cada medida para economia de peso possível fosse usada. Grande parte do avião foi construído com um até então secreto material, o Zicral, uma liga formada por 88% de alumínio. Esse é um material muito leve e com boa resistência mecânica. Apesar de sua contribuição para os militares, Horikoshi era contra a guerra. Depois do conflito, tornou-se professor. Faleceu em 1982, vítima de pneumonia.
Vidas ao Vento não nega sua origem (no caso, o Ghibli). É riquíssimo visualmente e cada quadro parece uma aquarela, construindo imagens potentes e poéticas. Devo confessar que não sou muito fã das animações japonesas, apesar de reconhecer a grandiosidade de muitos títulos. Elas me deixam sempre um pouco melancólico, não tanto pela história mas sim pelo tipo de desenho (repito aqui: são lindos, mas sou mais títulos como Toy Story). Por falar no roteiro, adianto que fiquei emocionado no final de Vidas ao Vento e algumas lagrimas caíram.
Jiro Horikoshi, um jovem que vive em uma cidade do interior, anseia em se tornar piloto de avião, mas sabe que nunca conseguirá, por conta de sua miopia. Em uma noite Jiro tem um sonho no qual se encontra com o engenheiro aeronáutico italiano Giovanni Caproni – que de fato existiu e foi um pioneiro na área. Bem, não vou contar muito pois sou contra spoilers, mas podemos dizer que o filme mostra a ambição do jovem japonês em projetar aeronaves. O título do longa é inspirado em uma citação do poeta francês Paul Valéry (e que aparece nos diálogos): “O vento se ergue, devemos tentar viver”. Como não pensar em nós, pessoas com aerofobia, que vencemos grandes batalhas cada vez que consigamos viajar?
Outra passagem particularmente bonita do roteiro continua fabulando sobre o assunto: “quem consegue ver o vento? Nem eu e nem você podemos vê-lo. Mas o vento passa, agitando as folhas das árvores”. Isso me faz lembrar imediatamente da importância do “vento” (do ar) na sustentação dos aviões, permitindo que essas maravilhosas máquinas possam voar.
O filme é uma grande ilustração do eterno sonho do ser humano em voar. Mostra todas as tentativas e erros cometidos na indústria aeroespacial, em como podemos correr obstinadamente em busca dos nossos desejos, sem que isso exclua falhas ao longo do caminho. Parte dos acidentes em Vidas ao Vento ocorrem nos sonhos de Jiro, e isso talvez seja uma metáfora de como nossos medos internos acabamos nos boicotando e nos tirando a magia de viver. Além disso, fica claro que cada avião que cai serve para melhorar a construção de novos modelos, de modo que os erros do passado não sejam repetidos. E é por tudo isso que indicio a animação japonesa às panicadas e panicados — e amantes da aviação, é claro.
Sobre a questão da guerra, a crítica especializada parece ter se dividido. Uma parte acha que o filme é um libelo contra as lutas e a favor da paz. “Criticada por humanizar um personagem que criou tanta destruição (o filme deve ser mal recebido nos EUA, já que Pearl Harbor foi devastado pelos Zeros), a animação tem uma mensagem clara, de pacifismo, um tema recorrente na obra do veterano realizador japonês”, pontuou em seu texto Érico Borgo no site Omelete.
Outros acreditam que Vidas ao Vento “passa pano” para este ponto central da trama. “Mas talvez o ponto mais complicado e questionável em Vidas ao Vento seja a sua relação com a guerra. Ora, o protagonista dedica a sua vida inteira a construir aviões usados pelo exército japonês, concebidos para matar pessoas, queimar cidades e defender certa ideia de nação. Tanto o diretor quanto o personagem se eximem de qualquer responsabilidade moral e ética neste trabalho: Jiro afirma, ingenuamente: `Eu nunca quis fazer aviões de guerra. Só queria fazer belos aviões’”, escreveu Bruno Carmelo em sua crítica no Adoro Cinema.
O que eu acho? Vou pelo caminho do meio. Acho que o filme é bem ambíguo com a questão, talvez mostrando a própria dicotomia do ser humano.
Vidas ao Vento foi indicado ao Oscar de melhor animação em 2014 (perdeu para Frozen). Conseguiu ainda um feito raro: uma indicação ao Globo de Ouro, mas como melhor filme estrangeiro (representando, claro, o Japão; naquele ano, os louros foram para o italiano A Grande Beleza). Pela obra, Hayao Miyazaki foi indicado ao Leão de Ouro, honra máxima do aclamado Festival de Veneza. Além disso, ele levou para a casa o Annie (tido como o Oscar da animação) como melhor roteiro do ano. Vale lembrar que o artista japonês tem duas estatuetas do Oscar em sua prateleira, um de 2003, por A Viagem de Chihiro (melhor animação) e um troféu honorário em 2015, pelo conjunto da obra. Parecia o desfecho justo para um mestre que ensaiou a aposentadoria com o Vidas ao Vento, lançado dois anos antes. Mas Miyazaki não parou, como chegou a ser anunciado. Em 2018 ele lançou o curta Boro the Caterpillar, escrito e dirigido por ele. E segundo a Bíblia do audiovisual, o site IMDb, ele está preparando o longa Kimitachi wa dô ikiru ka (Como vocês vivem, em tradução livre).
Mas e a tal “sobremesa” do título? Pois se trata de Sitara, curta-metragem em animação da paquistanesa Sharmeen Obaid-Chinoy (que por sinal já ganhou dois Oscars, mas por curtas-metragens documentais). Dessa vez, acompanhamos uma parte da vida de uma garota que deseja se tornar comandante, indo de encontro aos planos do pai. O filme, que também está na Netflix, é curtinho, mas consegue ser uma bomba e lança luz para um grave problema que ainda acontece no mundo (não vou dizer qual é pois, como já falei aqui, sou contra spoilers). Atenção para as cenas durante os créditos finais.