Como é voar em tempos de Covid-19? — conversamos com quem já viajou de avião durante a pandemia
Tudo é cíclico, diria um provável biscoitinho da sorte de um restaurante chinês qualquer. E na aviação em épocas da Covid-19 não seria diferente. Lá no início da pandemia (pelo menos quando começaram medidas preventivas no Brasil, em março e abril), as notícias ligadas ao setor aéreo pareciam apocalípticas, com previsão de um terrível baque nas empresas a curto, médio e longo prazo. Não que o fechamento de companhias nacionais e internacionaisl e a demissão de milhares de funcionário estejam descartadas, mas o que se percebe nos últimos dois meses é uma clara retomada, com anúncios diários de novos voos.
No caso do Brasil, as principais aéreas (LATAM, GOL e Azul) afirmam estar realizando procedimentos específicos pensando na saúde de passageiros e colaboradores. Em seus sites, elas destacam a renovação do ar de toda cabine a cada dois ou três minutos, a obrigatoriedade do uso de máscaras por todos a bordo, melhorias nos processos de embarque e desembarque para evitar aglomerações e incentivo do uso do check-in online. Também mostram estar atentas a pequenos detalhes, como pedir que os passageiros levem embora as revistas após a leitura. A lista completa de cada uma pode ser vista aqui (GOL), aqui (LATAM) e aqui (Azul). Segundo matéria da BBC Brasil, “o ar em um avião pode muito bem ser de melhor qualidade do que em um escritório, por exemplo — e quase certamente é melhor do que um trem ou um ônibus”.
Mas será que isso garante mesmo a segurança de quem viaja? Conversamos com Aristóteles Góes Neto, professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ele, as medidas tomadas até agora por aeroportos e empresas aéreas são eficientes (“dentro do possível, em um ambiente fechado e com espaço e circulação de ar restrita, é o máximo que se pode fazer”, afirma). Aristóteles dá ainda algumas recomendações a quem tiver de viajar, como sempre usar máscaras adequadas (modelo NBR95), manter a distância de outras pessoas – dentro do possível –, evitar ir ao toalete e, quando entrar ou sair do avião, não tocar em outras poltronas.
E as passageiras e passageiros? Como está sendo a experiência de viajar? Começamos com um relato ligado no 220 volts de uma brasileira que precisou, agora em julho, de cinco voos para chegar em casa, na Bulgária. O itinerário da consultora de negócios Camila Teles foi o seguinte: Vitória da Conquista – Salvador (GOL), Salvador – São Paulo/Guarulhos (LATAM), São Paulo/Guarulhos – Londres/Heathrow (LATAM), Londres/Heathrow – Munique (Lufthansa) e finalmente Munique – Sofia (Lufthansa), em uma jornada de quase três dias de duração. Aventura digna de alguém que conhece mais de 40 países e é criadora do perfil Sala de Conexão, sobre viagens. Ela conta que adotou várias medidas para minimizar os riscos de contágio, como cuidar da imunidade antes da viagem, levar quantidade apropriada de máscaras descartáveis para que pudesse fazer a troca com segurança, álcool em gel, lenços para limpeza, lenços de papel para abrir portas quando necessário, caneta extra para não usar a de outras pessoas, luvas descartáveis para alguma necessidade e lanches na bolsa.
“Por viajar com muita frequência durante o ano e trabalhar com turismo, o que mais me chocou foi ver os aeroportos com o movimento tão reduzido e perceber o impacto disso tudo na indústria. O aeroporto mais movimentado foi o Heathrow em Londres - e também o mais sujo. Já nos outros, o movimento anormal trouxe a tranquilidade de poder encontrar salas de conexão completamente vazias para descansar, lanchar e tirar um pouco a máscara, que acaba sendo incômoda. Por falar em máscara, essa foi outra mudança radical comparada à minha primeira viagem em março. Agora, o uso de máscara é obrigatório em todos os voos, podemos retirar somente para nos alimentarmos durante a viagem. No entanto, senti falta de regulamentação relacionada à distribuição de assentos, para manter alguma distância entre passageiros”, relata. Ela conta ainda que, além do uso obrigatório de máscara nos voos, outra mudança muito positiva que notou foi o novo esquema de saída da aeronave. Depois da aterrissagem, os comissários fazem chamada dos passageiros por números das fileiras, que devem deixar o avião ordenadamente. “Uma das comissárias até comentou: ‘Que sonho! Algumas normas deveriam ser mantidas para sempre’”, lembra. Camila registrou toda a viagem nos stories, que podem ser visto nos destaques (“aeroporto”) em seu instagram.
Camila não sofre de aerofobia. Mas e para um passageiro panicado, como está sendo lidar com voos em plena pandemia? O servidor público Thiago Madureira viajou na semana passada da cidade onde atualmente reside, Porto Velho (RO), até Fortaleza (CE), onde moram os pais e a companheira. “Sempre fui apaixonado por aeroportos, quando criança me sentia muito bem em deixar o meu pai no aeroporto para as viagens que ele fazia a trabalho na época. Aquele ambiente me fazia bem, tinha um charme diferente. Viajar de avião era algo muito esperado por mim também. Na época da Transbrasil, Varig, Vasp. O medo ainda não existia”, afirma.
O trajeto entre as capitais de Rondônia e Ceará durou quase 24 horas devido a uma conexão de 14 horas em Brasília (Thiago acabou dormindo em um hotel entre os voos, ambos operados pela GOL). “Fiquei tão focado na prevenção ao contágio que a tensão e superstições pré-voo não rolaram. Os aeroportos estavam bem mais vazios do que o habitual nos três pelos quais transitei”, diz. Mas a mesma tranquilidade não foi encontrada nos aviões. Com frota reduzida, eles otimizam os voos, pontua. Ele diz ter percebido muitas alterações no aeroporto e na logística do voo, como o uso de máscara e a suspensão da alimentação no voo, servindo somente água, mesmo assim só para quem pede.
O servidor notou também que os comissários transitam pouco no avião e que na hora do desembarque estão organizando a descida por fila. Procedimento que, na opinião de Thiago, poderia ser mantido sempre, não só durante a pandemia “Achei bem civilizado e não me pareceu atrasar a saída do avião. Havia comprado um equipamento de proteção individual (EPI) pela internet e fiquei na dúvida se usaria ou não, mas acabei usando nos voos. É possível que vire um meme (na internet), não duvido que alguém tenha tirado foto pra isso. Mas enfim, pensei na minha segurança. Não sei se exagerei, se bastava a máscara”, conta Thiago, ressaltando ainda que, apesar das filas, foram adesivadas marcações no chão para manter a distância entre os passageiros, até mesmo no finger (o corredor que conecta o terminal ao avião). O panicado conta que houve medição de temperatura na chegada aos aeroportos (a febre é um dos possíveis sintomas da Covid-19).
A ordem e paciência na hora do desembarque, entretanto, não foram observadas no primeiro voo da advogada Renata Brandão, que em junho pegou dois aviões para ir de sua cidade-natal (Salvador) ao país onde atualmente mora (Luxemburgo, entre França, Alemanha e Bélgica). Os voos foram Salvador – São Paulo (Guarulhos) e São Paulo (Guarulhos) – Paris (Charles de Gaulle) e depois houve a parte terrestre, de trem, até o destino final. No primeiro desembarque, no aeroporto paulista, ela diz que a maioria das pessoas se levantou para pegar a bagagem e houve aglomeração. “A tripulação (do voo doméstico) ofereceu água individual fechada e um pacotinho com um biscoito. Optei por não beber nem comer nada e limpei as mãos com álcool em gel quando cheguei e quando sai. Para minha sorte, a cadeira do meio estava vazia. Senti-me menos exposta ao vírus”, relata a advogada. Ela afirma que o aeroporto de Guarulhos, naquela noite, estava completamente vazio. Após o teste de temperatura, seguiu para o raio X e a imigração para ter acesso ao hotel no terminal internacional. No dia seguinte, tomou café da manhã onde se hospedou, e lá notou que todos os cuidados foram tomados. Foram servidas individualmente poucas mesas (dispostas com mais de dois metros de distância entre elas). Renata priorizou alimentos e bebidas quentes, evitando frutas.
O voo internacional, com a Air France, estava com cerca de 35% de ocupação, calcula a advogada. “Senti-me segura com esse distanciamento de mais de dois metros entre os passageiros, ao menos ao meu redor. A tripulação informou que iria reduzir a frequência do serviço de bordo e que as solicitações deveriam ser mais concentradas, considerando esse novo procedimento”. Em todo o trajeto ela utilizou as máscaras, proteção plástica para o rosto, óculos de grau e álcool em gel. Evitou tocar em superfícies e estabelecer conversas. “Todos os lugares e transportes estavam muito mais vazios do que o usual e as pessoas mais preocupadas e atentas aos protocolos. Foi uma viagem longa até chegar ao meu destino final, mas correu tudo dentro do esperado”, conclui.
Essa questão de deixar um assento vazio entre os passageiros é controversa. O New York Times ouviu especialistas em uma matéria publicada na semana passada. Uns acreditam que a distância oferecida nessa perspectiva não é a ideal. Outros dizem que quanto mais afastados os passageiros ficarem, melhor será. Nos EUA, grandes empresas como a Delta, Southwest Airlines e Alaska Airlines estão bloqueando para venda os assentos do meio. Já outras como a United não estão seguindo a medida. No Brasil, a LATAM diz que não disponibiliza o assento do meio “sempre que possível”, sem entrar em detalhes sobre o que isso significa. Segundo matéria do Huffpost Brasil, a GOL e a Azul apresentam medidas de segurança relacionadas ao novo coronavírus, mas não citam mudanças sobre o assento do meio.
Quem já está sofrendo com um futuro voo é o arquiteto Marcos Britto. Em março, deixou a cidade onde reside atualmente (Salvador) para voltar à terra natal (Estrela, no Rio Grande do Sul). Foi um trajeto em duas etapa: Salvador – São Paulo (Congonhas) e São Paulo (Congonhas) – Porto Alegre, sempre com a LATAM. Ele relembra que, naquele momento, não se falava em usar máscaras no aeroporto e que havia, inclusive, a indicação para que não se comprasse a proteção, pois poderia faltar para os médicos e demais profissionais da saúde. Segundo o gaúcho, algumas pessoas estavam de máscara a bordo, mas como no Brasil a utilização de tal EPI nunca foi costume, a maioria das pessoas não usava de forma correta, como uma passageira na mesma fileira que tirou a máscara para dormir e a apoiou sobre o queixo.
Marcos e a companheira decidiram voltar para Salvador e continuar o isolamento na casa que mantêm na capital baiana. As passagens foram compradas para início de agosto. Na semana passada, o arquiteto chegou a ter um pesadelo com a situação. “Sonhei que já não havia mais a separação entre grupos de risco, a taxa de letalidade era de 50% e ninguém sabia o fator que distinguia as pessoas que viviam das que morriam. Se você pegasse, ou viveria tranquilamente ou morreria na mesma hora. Já estávamos com as passagens compradas, o dia se aproximando, e cada vez mais pessoas morrendo, por vezes do nosso lado. Foi aterrorizante. Não ocorreu no meu pesadelo, mas pensando agora, se fosse assim, poderia inclusive gerar a situação de um avião decolar lotado e aterrisar com parte de seus passageiros já sem vida. Procuro não pensar muito nisso até chegar a hora do vôo, mas espero chegar bem, na medida do possível”, acredita Marcos.
É isso, gente. Eu fiquei bem mais aliviado para voar ao ler os relatos dos viajantes (mesmo com o sonho apocalíptico de Marcos). Ver que os aeroportos e empresas aéreas estão se empenhando para cuidar da saúde de viajantes e funcionários dá um certo alívio, não é mesmo? Já o medo de avião, esse talvez precise de um pouco mais de tempo…