O mapa visto por uma criança viajante

Quando uma criança sai de seu país de origem pela primeira vez, o que ela pensa? Tem a noção de que está em algum outro lugar, com hábitos, paisagens e cultura diferentes? E bem longe de casa? Comigo isso aconteceu aos 5 anos. E tive a exata certeza de que, parafraseando Dorothy de O Mágico de Oz, eu não estava mais na Bahia, estava distante de minha cidade (e curiosamente décadas depois chamaria esse novo país de meu segundo lar). Quando era pequeno, bem pequeno mesmo, eu já amava ver mapas, um prenúncio, talvez, do amor por viagens. Tinha um velho Atlas como amigo. E adorava ver rodando o globo — com uma uma luzinha dentro que podia ser acendido, coisa que eu achava o máximo. Assim, foi com certo preparo geográfico que fiz aquela primeira ida à Itália, numa época em que eu abria a mão todinha quando perguntavam minha idade.

 
 

E lembro bem que ali consolidava minha paixão por aviões. Já amava tudo que remetia ao tema, tenho plena certeza. Corria para ver (e ouvir) as barulhentas aeronaves que passavam no céu (elas eram bem mais ruidosas do que as atuais). Chegava a bater continência. Nada ligado ao militarismo, na minha cabeça era só uma forma de reverenciá-las. Então essa primeira jornada rumo à Europa foi cheia de magia. Lembro do estofado dos assentos com estampa alaranjada do avião que nos levou — eu e minha mãe — ao Rio de Janeiro. Pareço ainda ver o ar esfumaçado, pois na década de 1980 era permitido o fumo a bordo. Tenho vívidas recordações do voo da Alitalia até Roma, no colossal Boeing-747, o famoso Jumbo. A vista do Saara de cima, aquele mar seco e amarelo sem fim. A conexão no aeroporto de Fiumicino, na capital italiana, e o embarque no pequenino DC-9 da finada ATI com destino a Brindisi. Depois, pegamos a empoeirada estrada no verão mediterrâneo rumo a Erchie, cidade onde nasceu meu pai e ainda hoje vive parte da família, apesar das cada vez mais frequentes ligações com notícias tristes de falecimentos. Quase quatro décadas atrás, tudo era vida. E eu comecei a amar esses deslocamentos desde bem cedo.

Eu também sou a Itália, mas aos cinco anos de idade, as coisas eram meio confusas.

Nem preciso fechar os olhos para me lembrar de minha tia Susanna, então uma estranha para mim, falando uma língua que eu não conhecia e me mostrando na parede da sala um grande mapa, que naquele distante 1986 já parecia ser velho. Com toda gentileza que lhe era característica, ela apontava para aquele desenho no qual cada pedacinho (as regiões italianas) tinham uma cor. Ela direcionava o dedo para a Puglia, o famoso “salto alto” da bota. E dizia que estávamos ali. “Qui sei tu”. Talvez minha mãe tenha traduzido, ou talvez eu tenha intuito sozinho, mas compreendi que era naquele pedacinho de terra que eu estava naquele momento. Pode parecer loucura, mas juro que é real.

 
 

De alguma forma eu entendi que a terra era redonda — tem gente que até hoje não acredita —, certamente graças ao Atlas da família, ao meu globo e a um antigo livro de ciências sobre os planetas. Compreendia, de uma forma infantil, que estava em outro lugar, um lugar muito distante, pois a viagem tinha sido longa e cansativa. Tudo era diferente, as pessoas não falavam português, pra começo de conversa. Mas quando penso hoje, dobrada a barreira das quatro décadas de vida, naquela criança pequena, sinto que nascia ali a ideia de que eu era, sobretudo, um viajante. Que meu lugar no mundo era o mundo inteiro e que eu não cabia apenas em uma cidade. Também não estava restrito a um mapa com um único país, que naquela ocasião, como a esfinge, dizia para o garoto de 5 anos “decifra-me ou devoro-te”. Eu entendi tudo rapidinho. Fazer as malas e partir nos faz compreender melhor algumas coisas, talvez. O tal “botar as coisas em perspectiva”. Mesmo para quem ainda nem sabia o significa tal expressão.

As férias daquele pequeno viajante, claro, um dia terminaram. De volta ao Brasil, os anos foram passando e eu fui me descobrindo. Cresci em uma embaixada informal da Itália em Salvador (e como vivíamos sob um teto bem machista, o lado suíço de minha mãe foi bastante suprimido, mas isso é tema de outra história, que já foi contada em parte aqui). Na casa de minha infância e adolescência, pro bem e pro mal (haja terapia), eu estava em um outro lugar. Cresci meio baiano, meio gringo, e não só pelo idioma e pelo gosto por massas. Ali, passaportes chegaram e partiram, eu cheguei e parti. Minhas tias queridas vinham com frequência nos visitar, depois voltavam para onde vieram, e agora quase todas já foram embora desse planeta. Algumas passagens são só de ida, pelo menos assim creio eu.

Mas “la casa del nonno”, onde decifrei o mapa, essa continua de pé até hoje. Está fechada há alguns anos após a partida definitiva da última tia que ali morava, Susanna, que décadas atrás me apresentou a Itália na parede. E em outubro do ano passado, quando estive lá para rever aquela sólida e solitária construção de ar rochoso e assim relembrar meu passado, percorri tudo. Até os tetos em forma de abóbadas, onde na infância corri das abelhas ali criadas por um primo e dez anos depois fumei, escondido, o meu primeiro cigarro, roubado da bolsa de uma das tias mais amadas, que se foi em 2005. Sempre que vou àquela casa sinto uma sensação boa, um calor de vários verões, contrastado com os longos invernos que também vivi ali. Um lugar que se abriu pra mim e eu para ele. Uma construção que também me construiu. Viajar forma pontes não apenas com pessoas e cidades. Podemos nos conectar com animais, bares, restaurantes, praças. E casas.

 
 

E nessa visita — talvez a última, visto que a casa já está sem vida —, eu sabia bem o que queria. Ela, que tanto me deu, me concederia ainda um último presente. Fui direto para a antiga garagem, que na época do meu avô era o grande frantoio, lugar onde os cavalos faziam girar a enorme pedra central e, assim, moer as azeitonas para a produção do azeite de oliva. Há uns dez anos, redescobri ali o mapa repousando tristemente em um canto do galpão, atrás de umas pilhas de caixas empoeiradas. E lá ele ainda estava. Não tive dúvidas: peguei aquele pedaço de papel, agora já não tão grande como via na infância, enrolei e coloquei no carro alugado. De volta a Brindisi, onde fomos hóspedes de uma amada tia e um amado primo, corri para uma papelaria para comprar um desses tubos para transporte de papel, sem amassar. Na última loja do ramo da cidade, encontrei a bendita embalagem.

Hoje, meses depois daquela viagem, o mapa continua entubado, num canto de minha atual casa. O dia dele ver novamente a luz do sol e pousar (de vez?) em outro país ainda chegará. Vai ficar junto ao globo, que ainda tenho (capenga, mas tenho). É que sou enrolado e sempre postergo o dia de procurar uma molduraria. Mas num breve futuro darei a ele um portuguesíssimo “bem-vindo ao seu novo lar”. Uma morada de viajante. Você veio parar longe. Hoje sou eu que te apresento o mundo.