Cantiga junina — Olha o avião caindo! É mentira!

Este mês todinho, aqui no Nordeste, quase que só se fala em uma coisa: nos festejos juninos, até dia 29, Dia de São Pedro, festejadíssimo pelos lados de cá do país. E foi tomando café da manhã (hoje sem pamonha, infelizmente) e pensando em uma das mais famosas músicas de quadrilha que existem que me veio a ideia de fazer este texto pro rivotravel. São várias as versões que circulam na internet, mas escolhi essa que é mais simples. Veja só você:

— Olha a cobra! É mentira!

— Olha a chuva! Já passou!

— A ponte quebrou! Nova ponte!

Mesmo quem mora em outras regiões do país certamente está de certa forma familiarizado com algum desses versos. Para ser sincero, não sei muito bem o motivo pelo qual eles me levaram a pensar em aerofobia, mas tenho algumas teorias. A letra fala em superar algo, alguma situação. A deixar algo pra trás. A começar pela cobra.

 
 

Olha a cobra!

Muita gente tem medo do animal. Mesmo quem não tem um pavor enorme tem lá seu receio, pois a danada pode ser perigosa — e aqui no Brasil temos algumas das espécies mais venenosas do mundo. Olha a cobra! Mas é mentira. Não é assim que tratamos o medo de avião? Uma coisa danada de assustadora, mas que, lá no fundo, a gente sabe que é mentira.

Ou então lidamos com essa questão como uma verdade trôpega bem maluca. Por exemplo, saímos na rua e sabemos que é praticamente uma enorme mentira a possibilidade de sermos atropelados por um fusca cheio de palhaços assassinos. É impossível? Na teoria, não. Mas podemos assumir que é mentira, não é? Digamos assim: é muito, muito, muuuito pouco provável que esse fusca apareça em nossa frente. Assim como é muito, muito, muuuuuuito minúsculo o risco de estar envolvido em um acidente aéreo. E um detalhe: a maioria deles não deixa vítimas fatais. Todo mundo escapa. Sabia que a tripulação de bordo é treinada para evacuar uma aeronave em apenas um minuto e meio? Pois é. Isso sim é verdade. Aposto que você não conhece ninguém que passou por um acidente (acidente mesmo, não estou falando de arremetidas ou similares). E, se conhece, me passa o contato que quero entrevistar essa pessoa.

Em 2019, ano anterior à pandemia (que virou o cenário da aviação de cabeça pra baixo), as companhias aéreas ao redor do mundo transportaram a impressionante marca de 4,5 bilhões de passageiros. É bem mais que a metade de toda a população mundial (que naquele ano era estimada em 7,75 bilhões de pessoas). Segundo matéria da BBC, em 2019 um total de 257 pessoas morreram em acidentes aéreos. E esse número está em queda, com perdão do uso da palavra, pois em 2018 foram 534 pessoas que perderam a vida em aviões, quase o dobro do ano seguinte.

Vocês repararam nesses números? Em 2019, 257 pessoas morreram, em um universo de 4,5 bilhões de passageiros transportados. E ainda assim acreditamos que vamos falecer assim. Não estou criticando ninguém, eu mesmo morro de medo de voar, como vocês bem sabem. Mas não é curiosa nossa mente?

Ou seja, às vezes preferimos acreditar em mentiras, não é mesmo? Isso vale pra amizades, casamentos, trabalhos. O ser humano parece viciado em não ver aquilo que é óbvio. E haja terapia. “Olha a cobra! É mentira!” parece nosso cérebro funcionando. Ele vive querendo nos sabotar dizendo “Olha o acidente”. Mas aí, lá no fundo, em algum rincão escondido de nossa mente, chega a razão, sempre ela, ainda bem, e diz que é mentira. É mentira que esse avião vai cair. É mentira que se algo der errado você não vai sair dessa. E nem é a mente inventando coisa, não. São as estatísticas mesmo.

Olha a chuva!

Com “olha a chuva! Já passou!” também vejo similaridades com a aerofobia. Pelo menos com a minha. Eu sempre fico super ansioso na véspera das viagens aéreas, na ida ao aeroporto, no embarque e na decolagem. Depois, a adrenalina sai pelos poros e eu relaxo (tem gente que só fica tranquila depois que desembarca, mas não é o meu caso). E esse período de tempo, que para mim dura entre 12h e 24h, a depender do nervosismo, parece uma eternidade. Eu, lá no fundo, sei que vai passar, mas machuca. Sinto até dores no corpo. E muitas vezes o que me salva é isso: saber que vai passar. Assim como a chuva. Sei que ela tá me molhando, mas “quando a chuva passar, quando o tempo abrir, abra a janela e veja, eu sou o sol” (ahahahah, citei Ivete Sangalo).

a ponte quebrou!

Confesso que essa última estrofe (“A ponte quebrou! Nova ponte”) eu não conhecia. Pode ser que eu tenha achado na internet alguma versão junina mais distante de minha realidade soteropolitana. Mas ela também se aplica com o medo de voar, creio. Quantas vezes nos sentimentos quebrados ao entrar em um avião? Como se as partes do corpo estivessem desconectadas, sendo praticamente arrastadas pelos pessoa de trás na fila de embarque? E a força que falta para levantar a mala e colocar no bagageiro? Muitas vezes, decolamos em pedacinhos. Mas a delícia de chegar no destino junta todos eles, pelo menos para mim. Infelizmente, algumas pessoas nem conseguem aproveitar a viagem, já pensando no voo de volta. Para essas pessoas (e para todas as que sofrem de aerofobia), recomendo muita terapia (e quem sabe uma ajuda medicamentosa prescrita por um psiquiatra). Tudo em busca de consertar essa ponte. Que talvez quebre na próxima enxurrada/viagem de avião. Para depois ser reconstruída. Como dizem, é a vida.

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