No ar
Gabriel entrou no avião. Pé direito primeiro, claro. Em uma das mãos, uma mala cinza chumbo, dessas de rodinhas usadas por quem vai ficar poucos dias no destino. Na outra, o cartão de embarque. Nas costas, uma mochila pequena, branca e azul. Gabriel começou a caminhar em direção ao seu assento, o 5A. Na quinta fileira de poltronas, parou. Abriu o bagageiro, colocou suas coisas lá, sem muito esforço. Fechou o compartimento. Ficou parado, em pé. Abriu a boca, mas nada disse. Ficou assim por cinco segundos e….
“Corta”.
“Ok, gente, pausa de cinco minutos”. Algumas luzes ao fundo do galpão se acenderam.
Gabriel continuava em pé no avião aposentado que agora servia de locação para filmagens.
“O que houve, tesouro?”, disse Carla, a diretora, vestida com uma calça jeans preta e camisa do Sex Pistols, chegando perto, mas mantendo a distância de segurança de dois metros. O elástico da máscara cor de rosa bebê envolvia a orelha furada com sete piercings e um alargador.
“Não estou muito bem”, disse Gabriel, cambaleando e pegando a máscara das mãos de um assistente com o cuidado de quem pega nitroglicerina. Enxugou as mãos suadas na calça social caqui, deixando uma imperceptível marca de cinco dedos no tecido grosso.
“Venha, vamos dar um tempo aqui, venha se sentar. Quer comer algo?”.
Gabriel havia feito um café da manhã modesto. Uma xícara de leite morno com Nescau e doze uvas verdes e meio azedas que havia conseguido lavar e esfregar com uma escovinha uma a uma antes de perder a paciência e ver que estava atrasado.
Os dois se sentaram, lado a lado, mas separados.
“O que houve?’.
Gabriel ficou calado, imóvel. Como podia explicar um medo tão irracional? Como dizer que há cinco anos não voava, por pavor até mesmo de acessar o site de uma companhia e comprar a passagem? Que tremia até mesmo ao ver aviões voando alto, no céu? Que só de entrar naquele estúdio e ver aquele enorme tubo metálico cortado longitudinalmente como uma banana partida em duas bandas já era o suficiente para deixá-lo ofegante?
E também que tinha medo de não ser um bom ator, de não corresponder às expectativas do contratante, de ser alvo de chacota pela má atuação, meio charlatã, e acabar virando meme na internet?
E, se já não bastasse, morria de pânico de pegar o novo coronavírus? E que evitava sequer triscar nas poltrona? E que borrifou álcool líquido a 70% nas roupas e nas malas de mão enquanto ainda estava no camarim?
“Olha, meu caro, para te ajudar você precisa me dizer o que está passando”.
“Tenho medo de pegar Covid”, disse, seguido de uma pausa. “Mas não é só isso. Tenho medo de avião e só de estar aqui já fico me coçando todo”, disse, reunindo o fôlego e a coragem. “Não achei que seria assim, afinal é só um set de filmagens. Não sei o que está acontecendo comigo”.
Carla envergou as costas e cruzou as mãos à frente do corpo. “Ok, deixa eu pensar um pouco”.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos.
“Veja bem. Não sou psicóloga e não tenho a pretensão e nem o tempo para curar sua fobia, tá legal? Mas pense que você é um ator. Vista o personagem, e ele não tem medo de voar. Você consegue?”
“Não sei. É difícil para mim”.
“Entendo. Mas cada dia de filmagem custa um dinheirão e não temos outro ator agora para te substituir. A companhia aérea contratou a gente para fazer um vídeo institucional para falar dos cuidados com a saúde dos passageiro, que o ar na cabine é todo renovado a cada três minutos, que exige uso de máscara por todos a bordo e por aí vai, certo? E isso não combina com alguém nervoso que não consegue viajar. Mas uma coisa de cada vez, então. Voar é seguro, mas isso você já deve saber. Olhe o tanto de tecnologia que as fabricantes empregam na construção de aviões. E é muito mais seguro que viajar de ônibus ou de carro”, disse, uma cantilena ouvida por nove entre dez pessoas com aerofobia.
“Meu irmão vai se operar em Manaus em 15 dias e eu preciso ir lá ficar com ele. Não dá para ir por estrada”.
“Certo. Você tem tempo suficiente para ir a um psiquiatra que possa te ouvir e receitar um remédio para a ansiedade”.
“É, tenho”.
“Mas vamos focar no aqui e no agora. Sobre o vírus, estamos todos assustados, certo? Você não está sozinho nesse barco. A produtora se cercou de todos os protocolos de segurança. Olhe ao redor. A equipe está reduzida ao mínimo necessário. Tem gente fazendo aqui trabalho de duas ou três pessoas. Todos estão de máscara e respeitando a distância mínima. A temperatura de todo mundo foi medida antes de entrar aqui. O risco existe? Sim, mas é menor que seu medo. Foque no que importa. Tem um exercício simples que minha mãe me ensinou quando eu ficava ansiosa para fazer as provas no colégio. Inspire pelo nariz contando lentamente até quatro, depois segure o ar nos pulmões por mais quatro. Aí você expira lentamente pela boca por quatro segundos e depois de esvaziá-los mantenha-se assim por mais quatro segundos. Isso ajuda a acalmar, sério mesmo”.
“Ok”, respondeu Gabriel, já começando o exercício.
* * *
A chuva fina, fina caia há algum tempo. Gabriel já estava há algumas quadras de casa. Estava andando há duas horas. Preferia isso a pegar um uber e ter de lidar com o motorista possivelmente contaminado.
Chegando em casa, abriu a porta, tirou os sapatos (jogados imediatamente na zona de quarentena) e entrou. Viu as sacolas brancas do mercado, entregues de manhã cedo, e que não tivera tempo de lavar a arrumar por conta da filmagem. Ainda bem que não tinha nada de geladeira. Naquele momento, no apartamento escuro iluminado parcamente pela luz que vinha da rua, sentiu-se estranhamente em paz, seguro. Conseguira dizer o texto de forma tranquila e rápida e tudo acabou logo. O exercício de respiração ajudou mesmo. “Estamos preocupados com sua saúde e a de nossos colaboradores. Orientamos todos a fazer o check-in pelo nosso site ou aplicativo para evitar a aglomeração nos nossos balcões. Seguindo as orientações dos principais órgãos de saúde, estamos instalando adesivos nas filas para que nossos clientes mantenham a distância mínima de dois metros das pessoas próximas. Disponibilizamos álcool gel em nossas viagens. Por ora, a companhia está servindo água em copo individual apenas aos passageiros que solicitarem. Fazemos a higienização criteriosa dos aviões com desinfetante de uso profissional em cada parada”. Parecia tranquilizador.
Mas não demorou muito para Gabriel se ver mergulhado novamente em meio a tantos medos.
Enquanto esfregava com água e sabão (depois de ter borrifado álcool) por um minuto cada coisa do mercado, Gabriel pensava nas limitações cotidianas causadas por sua mente ansiosa. Medo de pegar um avião e morrer em uma queda. Medo de não conseguir embarcar para Manaus. Medo de perder o irmão. Medo de contrair o vírus. Medo de não estar lavando bem as compras, ai, que droga, essa tangerina veio meio podre, medo daquela tosse que começara há pouco na verdade ser um sintoma do Covid — apesar de a chuva e do vento na rua darem muitos indícios contrários à sua teoria. Medo de morrer sozinho, sem uma namorada ou um namorado. Medo de se contaminar com a doença ao lavar os cabelos e engolir aquele fiozinho de água que escorre pela cabeça projetada para trás e corre pela testa em direção ao rosto. Medo de não ter limpado bem as maçanetas, chaves, celular e carteira. Medo do espirro da mulher na esquina que o obrigara a cruzar a rua.
E, com tantos receios, Gabriel foi dormir. Foi um sono difícil. Despertou diversas vezes, sem ar, agoniado. Tinha pesadelos, às vezes acordado. Mas o pavor maior que o afligia era o de passar uma vida inteira se sentindo sufocado por tantos medos.
Um, dois, três, quatro.
Inspira…