Histórias de acidentes não fatais e o que eles têm a nos ensinar #01 — British Airways 9

A ideia de fazer essa série veio de uma inquietação. Apesar de nosso consciente saber que o avião é um meio de transporte super seguro, ganhando de lavada de outros como carro ou ônibus, ainda assim muitos se veem indo em direção à guilhotina cada vez que entram em uma aeronave. Visualizando aquela estrutura metálica envolta em uma bola de fogo com destino à morte. Acontece que muitos incidentes que ocorrem durante o voo sequer são percebidos pelos passageiros (e isso é tema para uma outra matéria) pois são resolvidos sem alardes pelos comandantes. E mesmo os de maior gravidade, que geralmente levam a um pouso de emergência, muitas vezes acabam sem vítimas fatais — ou mesmo sem feridos. Por isso, para tranquilizar as panicadas, panicados e simpatizantes, resolvi fazer essa série, para desmistificar a ideia segundo a qual todo acidente é fatal. Trazer à tona casos que, devido à perícia da tripulação ou à alta tecnologia do avião, não passaram de um grande susto. “Acidentes que ameaçam a vida (inclusive aqueles que não têm sobreviventes) são muito raros. Um evento desses só ocorre a cada 5,7 milhões de partidas”, afirmou, em 2017, em entrevista à BBC Brasil,  Edwin Galea, professor da Universidade de Greenwich — ele é matemático, especialista em engenharia de segurança e desenvolvedor de simulações. ”Digamos que se uma pessoa voasse todos os dias, experimentaria um acidente catastrófico em algum momento dentro dos próximos 2,7 mil anos”, declarou ao mesmo veículo de comunicação Perry Flint, porta-voz da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo, da sigla em inglês).

Para começar a série Histórias de quase acidentes e o que eles têm a nos contar, escolhi um caso ocorrido em 24 de junho de 1982 e que, olhando assim, à distância, tinha tudo para dar errado — mas, como já adiantei na introdução, deu tudo certo.

 
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Era uma noite tranquila de verão. O voo 9 da British Airways passava sobre a Indonésia. O modelo utilizado era um Boeing 747-200 e ia de Londres (Heathrow) a Auckland, na Nova Zelândia, com escalas em Bombaim (hoje Mumbai) e Madras (hoje Chennai), ambas na Índia; Kuala Lumpur, na Malásia; Perth e Melbourne, ambas na Austrália. No trecho entre Kuala Lumpur e Perth, estava com 263 pessoas a bordo sendo 248 passageiros e 15 tripulantes. 

 
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De repente, os pilotos notaram no para-brisas da cabine de comando a presença de fogo de santelmo, uma descarga  eletroluminescente provocada pela ionização (lembram das aulas de química?) do ar num forte  campo elétrico provocado pelas descargas elétricas. As estranhas luzes também foram vistas nas asas do 747. Simultaneamente a isso, uma densa fumaça preta com cheiro de enxofre começou a tomar conta da aeronave, entrando pelos dutos de ventilação. O ar ficou denso (aliviado pelas máscaras de oxigênio) e o calor tomou conta da cabine de passageiros. Para piorar, a cereja do bolo: os quatro motores do jato começaram um após o outro a falhar. O voo 9 virou um enorme planador. Em um cálculo rápido, o comandante estimou que conseguiriam voar por 169 quilômetros, levando em consideração a altitude que estavam no momento. 

 
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Mas, para piorar tudo, a máscara do copiloto apresentou um problema na mangueira, impedindo seu funcionamento. Ou seja, era preciso baixar mais rápido o avião, de modo a permitir a respiração sem equipamentos. Sendo assim, os passageiros, além de lidar com fumaça preta, máscaras, calor intenso, bilhetes de despedida (inúmeros foram escritos nesse meio tempo) e uma visão apocalíptica do lado de fora (as luzes de santelmo devem ser aterrorizantes para quem não conhece o fenômeno) ainda enfrentaram um súbito mergulho. 

Mas antes, o piloto, Eric Moody, proferiu umas palavras aos passageiros em um breve discurso que ficou célebre na aviação pelo tom direto e ao mesmo tempo cheio de eufemismos: 

“Senhoras e senhores, aqui é o seu capitão falando. Temos um pequeno problema. Todos os quatro motores pararam. Estamos fazendo o diabo para botá-los funcionando de novo. Confio que os senhores não estejam muito incomodados.”

Chegada a uma altitude de segurança e sem força gerada pelos motores, era hora de pensar para onde ir. Para piorar, a torre de controle do aeroporto de Jacarta, capital da Indonésia, não entendeu em um primeiro momento a gravidade da situação, tendo pensando que apenas “o motor 4” havia parado, fato que não representa risco iminente. Mas já não havia mais como chegar a Jacarta. Mais uma cereja nesse bolo pra lá de indigesto: entre a aeronave e a capital havia uma alta cadeia de montanhas, intransponível para a altura que estavam. O jeito era fazer um pouso no escuro, no oceano, nunca feito por um avião do porte do jumbo.

Mas aí veio a supresa: em uma última tentativa de fazer funcionar os motores, um deles voltou à ativa. Ainda era insuficiente para manter um 747 voando, mas já ajudava retardar a descida.  Pouco depois, outro motor voltou “à vida”. Era preciso subir para ultrapassar a barreira das montanhas. Mais uma novidade: o par de motores que permanecia inativo também trouxe um alento ao voltar a funcionar. 

Tudo estava indo bem quando um dos motores voltou a apagar. Por sorte, os outros três permaneceram em funcionamento. A aproximação em Jacarta já não era um remota possibilidade. O tempo estava firme na cidade, mas a chegada reservou novas surpresas. Foi preciso fazer o pouso por instrumentos, pois os pilotos não enxergavam absolutamente nada à frente. O para-brisa parecia que tinha sido todo lixado, deixando a visibilidade do lado de fora restrita a apenas uma estreita faixa da superfície outrora translúcida. Foi um pouso difícil, pois justo naquela noite adivinhem quem não estava funcionando? O sistema de aproximação por instrumentos do aeroporto indonésio, que dá orientação precisa ao avião que esteja na fase de aproximação final da pista. No último momento, vendo quase nada do lado de fora, o comandante conseguiu enxergar as luzes da pista. Pouso perfeito. 

 
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Mas o que levou a tudo isso, você deve estar se perguntando.  A luminosidade na qual o avião foi envolto era o primeiro sinal: ela vinha da descarga de eletricidade estática causada pelo atrito de cinza vulcânica de uma nuvem que o 747 atravessou. A nuvem vinha da erupção do monte Galunggung, um dos muitos vulcões ativos da ilha de Java, na Indonésia. Os silicatos, que são os principais constituintes das cinzas vulcânicas, não são detectados pelos aparelhos do avião ou em solo. Por isso que quando o vulcão Eyjafjallajökull entrou em erupção na Islândia, em 2010, o tráfego aéreo da Europa foi suspenso até que as partículas tivessem sido dissipadas e os níveis de segurança novamente estabelecidos. O risco (que foi justamente o que aconteceu com o voo 9) é que os motores sejam “entupidos” pelas cinzas. Mas quando o 747 da British Airways baixou de altitude e saiu da nuvem com o material vulcânico, as cinzas acabaram sendo expelidas e os motores voltaram a funcionar. 

Um enorme susto? Sim. Mas prova que nem tudo está perdido quando o cenário parece catastrófico.