Livros para viajar pelo mundo sem sair de casa
Quanto custa um tour pelo sudeste asiático? E uma passagem para Roma? Viajar é bom, é ótimo, é incrivelmente fantástico. Mas quanto você teria de desembolsar para um passeio bucólico pelo interior de Portugal…das primeiras décadas do século XX? Ou pelo Haiti de mais de 200 anos atrás?
Segue aqui comigo que eu te mostro o caminho.
O objetivo de fazer essa lista, assim como foi na matéria de três semanas atrás aqui no rivotravel — Filmes e séries na Netflix para viajar pelo mundo sem sair de casa —, não foi o de escolher títulos que contam sobre pontos turísticos. Tais atrações podem até estar presentes nas obras selecionadas aqui, mas não são o ponto central, os holofotes não estão nelas. Privilegiei livros que falam do dia a dia do local, como a cidade acorda, o que fazem seus habitantes, o que almejam. Ficção ou relato de viagem (amo), busquei ser o mais eclético possível. O atual contexto no qual vivemos, de uma pandemia, pede reclusão. Mal podemos ir na esquina sem todos os cuidados necessários. Viajar, então, parece irreal. Nesse caso, a literatura pode e deve ser usada de forma indiscriminada, sem contraindicações.
E, se na matéria sobre filmes e séries eu fechei com chave de ouro com quatro dicas vindas da África, hoje o continente abre este texto. É inacreditável a lacuna que tenho em minha formação quando o assunto é literatura africana (acho que isso ocorre com a maioria das pessoas, não?). Então, chamo o correspondente do rivotravel (sempre quis dizer isso) Krishna Monteiro. Ele é diplomata e atualmente vive em Dar es Salaam, na Tanzânia – já morou, entre outros lugares, no Sudão. E também é escritor! O livro de contos O que não existe mais, sua estreia na literatura, foi finalista do prestigiado prêmio Jabuti em 2016. Dois anos depois, ele lançou seu primeiro romance, O Mal de Lázaro.
Então, é com você, Krishna. Embarque para a Nigéria com:
O MUNDO SE DESPEDAÇA, DE CHINUA ACHEBE
“Publicado em 1958 e primeira obra do nigeriano Chinua Achebe, O mundo se despedaça é um dos grandes clássicos da literatura africana, um dos romances fundadores da moderna tradição literária do continente. Com a maestria dos grandes narradores, Achebe conta a história de Okonkwo, um chefe tribal de grande prestígio que vê seu mundo e suas tradições ruírem por conta da chegada dos colonizadores, do cristianismo, da modernidade. Um livro fundamental para compreender os efeitos da colonização na África”.
Agora, um voo doméstico dentro da própria Nigéria com:
MEIO SOL AMARELO, DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE
“Publicado em 2006 e considerado um clássico contemporâneo, Meio sol amarelo conta a história da guerra de Biafra e da tentativa de criação de um Estado independente pela etnia igbo, na Nigéria. Ao longo do romance, Adichie mostra como a guerra e suas atrocidades modificam a vida e os destinos de cinco personagens: o menino Ugwu; as gêmeas Olanna e Kainene; o escritor Richard; o revolucionário Odenigbo. Vencedor de vários prêmios, Meio sol amarelo é o Guerra e paz nigeriano”.
“De volta à redação do rivotravel, Salvatore”, disse Krishna, em uma fala 100% inventada (a ficção está liberada neste texto).
Vamos dar continuidade a essa jornada pelo mundo por meio dos livros. Embarque para Portugal com:
NOVOS CONTOS DA MONTANHA, DE MIGUEL TORGA
Eu amo de paixão esse livro, publicado pela primeira vez em 1944. Li no ensino médio, “para o vestibular”, mas já reli algumas outras vezes em minha fase adulta. E que delícia travar novo contato uma obra que te encantou na adolescência. Novos contos da montanha não é um passeio turístico por Lisboa ou Porto, nem pelas suas casas de fado ou vinícolas. Torga, em sua série de contos, relata o dia a dia do interior rural do país ibérico onde nasceu. Parece uma volta no tempo. O estilo do português revela detalhes e tradições perdidas na modernização do país. Mostra, em linguagem bem simples, o cotidiano das pessoas comuns, levando os leitores a acompanhar a vida diária nos bucólicos cenários lusos. Certamente um viajante hoje encontrará um Portugal distante daquele relatado pelo autor. Como em O caçador: “A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a juventude e a maioridade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que não conseguia ver. A aldeia formigava de questões e de raivas, e ele coava-lhe apenas a agitação de longe, vendo-a fumegar na distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e contemplativo”. Essa é a magia da literatura: proporcionar uma viagem para o passado, para onde nenhuma companhia aérea pode levar. Se forem ler Novos contos da montanha, prestem atenção na história de Mariana, a minha favorita, sobre uma mulher cuja vida parece se resumir a ter filhos e cuja trajetória é marcada por pura poesia (“Calma, sentou-se então numa anteira, com a mão direita a alisar docemente a penugem da criança. Depois, quando o Júlio acabou, ergueu-se e foi caminhando a seu lado, na paz simples de quem ia por bom caminho").
Da terrinha do outro lado de lá do Atlântico vamos para a terrinha do lado de cá. Embarque para o Rio de Janeiro com:
LAÇOS DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR
Outro livro que li na adolescência e que me marcou profundamente foi Laços de Família. Clarice viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro. Inclusive a relação da escritora com a cidade foi tema de um livro, O Rio de Clarice – passeio afetivo pela cidade, da biógrafa Teresa Monteiro. Entrevistada pela revista CLAUDIA, em 2018, sobre qual lugar representa melhor a personalidade de Clarice, Teresa respondeu: “O Jardim Botânico, sem dúvida. É citado em várias crônicas e cenário de seu conto Amor. Era lá que ela amava escrever, passear e “ficava sendo”, como gostava de dizer”. E foi justamente esse o conto que mais me marcou em Laços de Família (que não tem relação com a novela homônima de Manoel Carlos). Uns anos atrás, em uma viagem ao Rio de Janeiro a trabalho, tive a oportunidade de, em uma brecha em minha concorrida agenda (risos), ir ao Jardim Botânico. Nas mãos, meu Laços de Família ainda da época do colégio. Foi uma experiência incrível ler o conto onde ele foi ambientado (e onde possivelmente foi gerado). Clarice escreveu em Amor: “Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos”. Não sei se é a memória me enganando ou se foi a imersão da leitura grande demais naquele dia, só sei que me lembro de ter visto e sentido tudo isso in loco. Um Rio de Janeiro distante da imagem de cartão-postal e das praias da zona sul, cheio de mistérios e morbidez. Clarice viveu no Rio por quase três décadas. Essa relação de encantamento com a natureza da cidade é abordada em outros livros da escritora, como em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Nele, a escritora descreve a Floresta da Tijuca, com árvores “enormes, encipoadas, repletas de parasitas". E o bairro da Tijuca, onde passou parte da vida, foi cenário do conto A imitação da rosa, também de Laços de Família: “O vestido marrom combinava com seus olhos e a golinha de renda creme dava-lhe alguma coisa de infantil, como um menino antigo. E, de volta à paz noturna da Tijuca – não mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e alegres saindo para as folgas depois de tê-la lançado como a uma galinha indefesa no abismo da insulina –, de volta à paz noturna da Tijuca, de volta à sua verdadeira vida”. Acho que vou comprar esse livro O Rio de Clarice e levá-lo em minha próxima viagem à cidade.
E do Rio de Janeiro vamos subir um pouco. Embarque para o sertão nordestino com:
VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS; E MORTE E VIDA SEVERINA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Tentei escolher um dos dois clássicos, mas não consegui. Ambos me marcaram muito na adolescência. Só agora, escrevendo essas linhas, me dou conta da importância do meu colégio na minha formação como leitor (beijo, Antonio Vieira). Em Vidas secas, romance publicado em 1938, seguimos a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca. “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça. Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás”. Um cachorra, magra, esquálida, chamada Baleia. Dois meninos, igualmente magros, que nem nome têm. A obra pertence à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, sendo um de seus maiores expoentes. O estilo de Graciliano é seco, direto, como quem transmite ao leitor a aridez da paisagem e das relações ali presentes. O título escolhido pelo autor alagoano mostra a desumanização que a seca promove nos personagens. As falas de Fabiano e sua família são tão estéreis quanto o solo da região. Além da pobreza causada pela seca, há ainda a miséria produzida pela exploração dos ricos donos de terra da região.
Um dos poemas mais populares de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina dá voz aos retirantes nordestinos em cenas fortes e contundentes. É uma crítica social (assim como Vidas secas). Na obra, vemos a trajetória de um sertanejo chamado Severino, que, como inúmeros fizeram e ainda fazem, sai de sua terra para buscar uma vida melhor. Durante a jornada, Severino se encontra com a Morte ao cruzar o sertão em busca do litoral. O poema é divido em duas partes: a primeira com o caminho do protagonista até o Recife e a segunda com sua chegada à capital pernambucana. Na metrópole, a sina de Severino continua marcada pela morte. Apesar da mudança de cenário, a miséria segue sendo a tônica. A terra seca, pedregosa, dá lugar ao mangue, às terras alagadas onde os retirantes habitam. É potente tal paradoxo. Não há mais falta de água, mas a marginalização continua. O destino dos milhões de severinos parece ser o de continuar vivendo na miséria, cercados pela morte. Morte e vida severina é a obra-prima do poeta pernambucano. Em 1965, já na Ditadura Militar, Roberto Freire, diretor do engajado teatro TUCA da PUC de São Paulo, pediu ao jovem Chico Buarque que musicasse a obra para que pudesse ser encenada. Em 1977, o diretor Zelito Viana lançou o filme baseado na obra, com Tânia Alves, José Dumont e Stenio Garcia no elenco. Morte e vida severina tem estrofes potentes, como a seguinte, ao descrever um enterro e fazer uma forte denúncia sobre os grandes latifundiários:
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe neste latifúndio.
— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
Forte, não?
Bem, vamos agora dar um salto e parar do outro lado do mundo. Embarque para o sudeste asiático, China, Mongólia e Rússia com:
UM ADIVINHO ME DISSE, DE TIZIANO TERZANI
A premissa é bem interessante. O autor de Um adivinho me disse, Tiziano Terzani, revê em uma autobiografia alguns anos de sua vida nos quais viveu, com a família, em Bangkok, na Tailândia, trabalhando como correspondente internacional. O italiano, certa vez, vai a um adivinho que faz uma premonição. “A vida oferece-nos sempre uma boa oportunidade. O problema é sabermos reconhecê-la, o que nem sempre é fácil. A minha, por exemplo, tinha todo o ar de ser uma maldição. Cuidado! No ano de 1993 corres um grande risco de morrer. Nesse ano, não andes de avião. Não andes nunca, dissera-me um adivinho”. Então, em 1993, o jornalista decide viajar sempre por via terrestre – de ônibus, carro ou trem – ou então de barco, para fazer suas reportagens. E descobre a realidade de diversos países da região, ao mesmo tempo que testemunha as transformações que o início da década de 1990 reservou para tais nações, como a perda de traços culturais milenares frente ao capitalismo avassalador. Vê o antigo e o novo, muitas vezes brigando para ver quem vence. “O automóvel que me esperava em Takeck, o posto fronteiriço tailandês em frente ao Paksé, era como uma máquina do tempo. Apanhou-me à saída de um Laos antigo, remoto e ainda virginal, e em poucas horas devolveu-me ao modernismo vulgar de Bangkok, suja, caótica, empestada, onde a água está poluída e o ar carregado de chumbo”, escreve. Mas é possível achar poesia em meio a essa caos descrito. Logo depois de descrever a capital e suas mazelas, ele fala sobre a relação dos habitantes da megalópole asiática com os pii, os espíritos. “Para que os pii se sentissem contentes, estivessem em paz e não causassem aborrecimentos aos comuns mortais, em cada canto da cidade, em todas as ruas, em frente de cada casa, havia pequenos templos a eles dedicados e toda a gente tinha a preocupação de lá pôr sempre comida, pequenos elefantes de madeira, bailarinas de gesso, um copinho cheio de álcool e lindos colares de perfumadas flores de jasmim". Ele também tece considerações sobre a China. “O destino desta extraordinária civilização, que ao longo de milênios seguira outro caminho, que enfrentara a vida, a morte, a natureza e os deuses de maneira diferente dos outros, entristecia-me (…). Essa civilização hoje procura apenas ser moderna como o Ocidente; quer ser como aquela ilhota com ar condicionado que é Singapura; produz jovens que sonham apenas em vestir-se como agentes comerciais e fazer filas em frente dos fast foods da McDonald’s”. Em resumo: naqueles 12 meses, o jornalista viveu experiências que talvez fossem impensadas se tivesse feito as viagens em aviões. No livro, o italiano relata as incursões por vilarejos onde a vida corre preguiçosa, por florestas quase impenetráveis, por capitais caóticas. Terzani percorre rios e mares e arrisca a vida escapando de guerrilheiros. Em cada parada, se consulta com um adivinho, apesar do grande ceticismo que admite ter, fruto do pensamento racional de um homem do Ocidente. E mais: ele volta à Itália por terra, numa incrível jornada saindo do Vietnã e cruzando a China, Mongólia e Rússia, vendo pela janela do trem e em cada parada as graduais mudanças na paisagem e nos costumes do povo local. O relato de Tiziano Terzani é delicioso e nos mostra que muitas vezes o caminho é tão ou até mais interessante que o destino final.
E sem precisar pegar um avião, embarque para o Caribe e o sul dos EUA com:
A ILHA SOB O MAR, DE ISABEL ALLENDE
Esse livro me tocou demais (choreeeei no final). Em fins do século XVIII, em Saint-Domingue, onde hoje é o Haiti, as plantações de cana de açúcar transformaram a ilha, de colonização francesa, na colônia mais rica do mundo. O açúcar era o ouro doce, e cortar cana, triturá-la e reduzi-la a melaço não constituía trabalho de gente, mas de bicho, como diziam os plantadores. Toulouse Valmorain acabara de completar vinte anos quando foi convocado com urgência à colônia para assumir uma fazenda, onde os negros escravizados morriam após 18 meses de trabalho, de exaustão. Chegando lá, Valmorain compra Zarité, uma menina negra de nove anos de idade, para realizar trabalhos domésticos. A criança acaba aprendendo os mistérios dos loas (espíritos da religião vodu) e os segredos para curar e amenizar a dor de seus irmãos e irmãs escravizadas. Após uma série de episódios (verídicos, como a revolução haitiana, entre 1791 e 1804), ela é levada em fuga pelo patrão para a Louisiana, no sul dos EUA. Lá, começa uma nova etapa de sua vida. Isabel Allende tem uma escrita muito sensível e consegue levar quem a lê para o universo sufocante da antiga colônia francesa no Caribe e depois para os campos de cana norte-americanos. A ilha sob o mar é um cruel (e necessário) retrato do horrendo passado escravagista das Américas, cheio de rupturas familiares, torturas e violência sexual. Allende escreve: “Honoré parecia muito velho porque seus ossos haviam esfriado, embora naquela época ele não tivesse mais idade do que tenho agora. Bebia cachaça para suportar o sofrimento de se mexer, porém, mais do que esse licor áspero, o seu melhor remédio era a música. Seus gemidos se transformavam em riso ao som dos tambores (…). Quando eu ainda não sabia andar, ele me fazia dançar sentada, e assim que pude me sustentar nas pernas, me convidava a me perder na música como quem se perde num sonho: ‘Dance, dance, Zarité, porque escravo que dança é livre…enquanto dança’. Eu sempre dancei”. A escritora também dedica páginas para descrever a cidade de Le Cap (a atual Cap-Haïtien, ou Cabo Haitiano, em português, situada no norte do Haiti). “Le Cap, com suas casas de telhados vermelhos, movimentadas ruelas e mercados, com o porto onde sempre havia dezenas de barcos ancorados para voltar à Europa com seu tesouro de açúcar, tabaco, anil e café, continuava sendo a Paris das Antilhas. Era assim como o chamavam de gozação os colonos franceses, já que a aspiração comum era fazer fortuna rápida e voltar a Paris para esquecer o ódio que flutuava no ar da ilha, como as nuvens de mosquitos e a pestilência de abril". Isabel Allende segue com a descrição da cidade: “Uma multidão se acotovelava nas rua enlameadas, pechinchando em muitas línguas entre carroções, mulas, cavalos e cães vadios que se alimentavam de lixo. Ali se sentiam dos luxos de Paris e das bugigangas do Oriente ao tesouro dos piratas".
De volta aos tempos atuais, vamos para Roma com:
ME ENCONTRE, de ANDRÉ ACIMAN
O autor ítalo-egípcio americano já havia oferecido às leitoras e leitores um belo passeio pela capital italiana em sua obra mais famosa, Me chame pelo seu nome. Quem viu o filme deve lembrar que os dois personagens principais da trama fazem juntos uma viagem, a uma cidade aleatória, não identificada no longa. No livro, entretanto, é para Roma que eles vão. A alma da cidade é revelada em toda sua intensidade na escrita do autor. “Havia uma multidão de consumidores de café em pé e sentados em volta da famosa cafeteria romana. Eu amava ver todas aquelas pessoas com roupas leves tão próximas de mim, todas compartilhando a mesma coisa elementar: o amor pela noite, o amor pela cidade, o amor por seu povo e um desejo ardente por união”, escreve Aciman sobre o Caffè Sant’Eustachio, inaugurando nos anos 1930, ou seja, um recém-nascido nos 2.700 anos de história romana. O flanar pela cidade continua em Me encontre. Estão lá as vielas, as igrejas, as praças e as fontanas que rendem fama à Cidade Eterna. Para quem já a conhece, é como um bilhete para voltar a visitá-la. Quem nunca esteve em Roma, a leitura da obra oferece um belo panorama. “Deixamos meu prédio antigo, caminhamos por entre vendedores ambulantes que pareciam nunca dormir. As ruelas estavam agitadas e eu gostava das multidões festivas e dos restaurantes e enotecas superlotados, cada um com suas lâmpadas de aquecimento infravermelhas. ‘Amo essas ruelas estreitas à noite’, disse ela. ‘Eu cresci aqui'. Eu a abracei com ambos os braços e a beijei mais uma vez. Estava amando conhecer sobre sua vida. Disse a ela que queria saber de tudo’”. Acho delicioso que Me encontre escolhe explorar a cidade nos horários que mais gosto, quando os turistas estão recolhidos em seus hotéis, ou seja, tarde da noite ou de manhã cedinho (“Quando saímos do hotel, a rua estava quase deserta. ‘Amo a Roma fantasma, assim vazia’”). Ou então: “depois do café da manhã, atravessamos a ponte e estávamos prestes a ir em direção a Aventine, mas mudamos de ideia e voltamos pelo Lungotevere. Era sábado de manhã, ainda bem cedo, e a cidade estava muito silenciosa”, escreve Aciman sobre o doce passeio às margens do rio Tévere. Ou ainda: “ela perguntou se eu estava com sono. Não estava. Se eu queria dar uma caminhada? Adoraria, respondi. A via Giulia vazia é um sonho”. A via Giulia é uma famosa e movimentada rua do centro histórico, uma das primeiras obras de renovação urbana na Europa renascentista. Foi comissionada pelo Papa Júlio II, no início do século XVI, ao pintor e arquiteto Donato Bramante, um dos nomes por trás da construção da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Hoje, a via Giulia é famosa pelos seus inúmeros antiquários. Um passeio por lá é obrigatório. De madrugada, sem disputar espaço com as turistas e romanos, então…
Queria encerrar essa matéria com uma viagem um pouco atípica. Embarque para lugar onde só a imaginação alcança com:
as cidades invisíveis, de italo calvino
Tenho uma relação ambígua com esse livro. Muitas vezes pego o volume na estante da sala, leio um pouco e devolvo para o lugar de origem. Ora me conecto, ora me afasto. Reconheço muitos de seus méritos. Acho belíssimo o relato da cidade (todas são fictícias) de Despina. “Há duas maneiras de se alcançar Despina: de navio ou de camelo. A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar. O cavaleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus (…) imagina um navio. (…). Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um camelo. (…) Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro veem Despina, cidade de confim entre dois desertos”. As cidades invisíveis é um dos livros favoritos do editor do rivotravel, então deixo ele falar um pouco sobre o título. “Muitas cidades fantásticas são descritas aqui e somos convidados a imaginá-las, mas somos levados a vislumbrar para muito além da sua forma. As cidades se revelam complexas de um jeito muitas vezes inesperado. Com desejos, dilemas, detalhes… São muitos os relatos e Calvino toca no que há de único em cada lugar. O que é revelado na experiência do viajante causa em nós uma outra experiência. Cada um que passear por estas páginas irá levar algo daqueles lugares, que por não existirem tornam a jornada literária muito mais inusitada — e extremamente valiosa. Oportunidade única! Acabamos conhecendo um pouco mais sobre nós mesmo, no final das contas. Viagem faz isso, né?”
E aproveito essa deliciosa e onírica viagem para anunciar às senhoras e senhores leitores o fim dessa jornada. Viajar pelas letras é clichê, mas a mais profunda verdade. Outro detalhe fantástico que a literatura proporciona: amo, ao ler uma obra, reconhecer lugares nos quais já estive. É como voltar até eles, sem pagar um centavo sequer — se o livro for emprestado ou presente de alguém. Ou propositalmente esquecido em algum banco de praça. Já fiz isso uma vez. Quem sabe por onde andará aquele livro, que me ajudou a sair de meu mundo e que embarcou ele mesmo em uma própria jornada. E a sua? Para onde será sua próxima viagem literária?