Qual o futuro das viagens pós-COVID-19? E quem tem medo de voar no meio disso tudo?

Como serão as viagens no cenário pós-COVID-19? A indústria do turismo conseguirá se reerguer e retomar o cenário pré-pandemia? Quais as mudanças que empresas e viajantes terão de tomar para minimizar riscos à saúde? E como fica a questão de quem tem pânico de voar? 

Começar uma matéria com tantas interrogações é um pouco incomum, mas vivemos uma época de incertezas e de dúvidas no ar causada pela disseminação do novo coronavírus ao redor do mundo. A situação global no que tange as viagens de turismo ou negócios em diversos aspectos ainda é incerta, e este texto não tem a pretensão de ser uma resposta única e final sobre o assunto, uma vez que a pandemia está em curso e tudo pode mudar em questão de dias. A proposta é justamente tentar esboçar possíveis panoramas. Para tanto, entrevistei pesquisadores da área de turismo, em uma tentativa de lançar luz na questão.

 
O que será que o futuro reserva para o turismo quando essa pandemia passar, hein?

O que será que o futuro reserva para o turismo quando essa pandemia passar, hein?

 

Segundo Reinaldo Teles, doutor em Ciências da Comunicação, Turismo e Lazer pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e líder do Grupo de Pesquisa de Turismo Urbano e de Turismo e Relações Internacionais da instituição, é possível afirmar que o turismo é um dos setores que mais estão sentindo os efeitos da crise causada pela pandemia do novo coronavírus. No entanto, ele prossegue, dada a complexidade do setor e a capacidade de abrangência da atividade turística, é difícil estimar este prejuízo. Alguns dados fornecidos pelo pesquisador podem servir como norte: o Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil (FOHB) já registra alto percentual de hotéis fechados no país e todos os resorts nacionais estão com operações suspensas. A queda de voos no mundo, de janeiro a abril, chegou a 78%, sendo que esse número alcançou 90% no Brasil e toda América do Sul, segundo dados do flightradar24.com

O pesquisador da USP chama a atenção para um fato interessante: não são apenas os tradicionais destinos turísticos que perderam sua fonte de renda. “Qualquer cidade ou região pode se beneficiar do turismo mesmo não contando com a presença do turista. Basta que estes lugares sejam fornecedores de bens que serão consumidos pelos turistas, como, por exemplo, fornecedores de matérias-primas para produtos artesanais, industriais, agrícolas, alimentícios, mão de obra etc, que de uma forma ou de outra chegam às localidades turísticas”, afirma.

Mas o que deve mudar no turismo doméstico e internacional após o fim da pandemia? Quem responde é Wilker Nóbrega, professor do departamento de Turismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e líder do Grupo de Pesquisa em Planejamento e Organização do Turismo – GEPPOT/ UFRN. “No âmbito doméstico (voos nacionais), minha impressão é que as viagens terão uma redução significativa, algo em torno de 50%, principalmente enquanto não tivermos o desenvolvimento de uma vacina para o controle da COVID-19. Especialistas estimam que seja necessário de 18 a 24 meses para a descoberta de um tratamento mais eficaz, ou seja, creio que este cenário deve permanecer até o início de 2022”, afirma. 

O professor da USP concorda com o colega da UFRN: uma vacina para controle da doença é peça-chave para a retomada do turismo local e global. “Se o contato (entre pessoas) é uma fonte de contaminação direta, evitar essa condição será o nosso maior desafio. Creio que o viajante consciente não se renderá aos apelos mercadológicos que o coloque em risco. Por outro lado, os gestores dos grandes destinos já se organizam para retomar o movimento turístico”. Ele cita o caso do parque da Disney de Xangai, que voltou a abrir suas portas ao público no início da semana, mas com restrições. Apesar da ameaça persistente do novo coronavírus, continua o professor, já há sinal da volta à normalidade progressiva na China. “Orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), tais como distanciamento, higienização, controle de temperatura do corpo são medidas que estão sendo colocadas em prática. A decisão de abertura ou não estará sempre aliada a política de cada país, creio que essa decisão de Xangai possa influenciar diretamente os EUA, que também possuem uma política econômica agressiva”. Mas ele é cético: “Eu, sinceramente, diria que esse não é o melhor momento para se arriscar numa viagem em destinos com essa configuração”, observa.

 
Disney de Xangai reabre com distanciamento social. Visitantes do parque precisaram usar máscaras e tiveram as temperaturas aferidas. Crédito da foto: Disney/divulgação

Disney de Xangai reabre com distanciamento social. Visitantes do parque precisaram usar máscaras e tiveram as temperaturas aferidas. Crédito da foto: Disney/divulgação

A estratégia chinesa deve ser usada em outros parques temáticos da empresa ao redor do mundo nas próximas semanas. Crédito da foto: Disney/divulgação

A estratégia chinesa deve ser usada em outros parques temáticos da empresa ao redor do mundo nas próximas semanas. Crédito da foto: Disney/divulgação

 

Além da China e EUA, outros países já estão se movimentando para impulsionar o turismo pós-COVID-19, explica Mara Lottici Krahl, professora do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (UnB). “Cito o exemplo a ilha da Sicília, no sul da Itália, que criou um fundo e pretende injetar 75 milhões de euros para subsidiar em torno de 600 mil pacotes (turísticos) para para ajudar na recuperação das empresas do local. Além disso, o projeto, ainda em fase de elaboração, prevê negociar descontos com as companhias aéreas”, afirma.

Professor da pós-graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Pedro de Alcântara César diz que as estruturas que recebem turistas terão de ser repensadas, mesmo entre os pequenos comerciantes. Quem é dono de restaurante por quilo, por exemplo, vai ter de reavaliar as normas de higiene, adotar uso de máscaras e reforçar proteções de vidros que permitam apenas a entrada das mãos para se servir. “Esse ponto da higiene será muito forte. Até nas propagandas. Um hotel, por exemplo, vai destacar essa questão, não apenas a localização, a vista pro mar, o conforto. Essa mudança nos costumes vai afetar também a área das construções. Pensar espaços de entrada que não permitam aglomerações e com facilidade de higienização”, afirma Pedro. 

Sobre quem tem medo de voar, as notícias, infelizmente, não são as melhores a curto prazo. “A pandemia naturalmente é materializada por meio do medo, e nesse caso além do pânico em voar associa-se a um ambiente fechado com cerca de 200 passageiros, muito próximos uns aos outros. E que corriqueiramente podem transmitir gotículas respiratórias que podem potencializar o medo destes passageiros. Especialistas do campo da saúde destacam os aeroportos e aeronaves como um dos locais mais propícios para a proliferação do vírus. Então, acredito que essa sensação de medo de voar deverá agravar ainda mais entre os passageiros que utilizam as aeronaves”, afirma Wilker Nóbrega, da UFRN. Reinaldo Teles, da USP, ressalta ainda: “O pânico em voar já era uma realidade para muitos. Quase metade da população no mundo relata em algum grau o medo de viajar de avião. Esse medo pode ser patológico, quando muito intenso pode ser tratado. Com a pandemia, creio que tenha aflorado em muitos um sentimento de desamparo. Num momento como este, distanciar-se de casa pode significar ameaça”, afirma. 

 
Empresa italiana Avio desenvolveu esse projeto de “assentos intercalados”e com divisórias translúcidas para aumentar o isolamento dos passageiros. Nenhuma empresa confirmou a compra da ideia até o momento. Crédito da imagem: divulgação Avio Interiors

Empresa italiana Avio desenvolveu esse projeto de “assentos intercalados”e com divisórias translúcidas para aumentar o isolamento dos passageiros. Nenhuma empresa confirmou a compra da ideia até o momento. Crédito da imagem: divulgação Avio Interiors

 

E é possível que as pessoas passem a ter medo de viajar, enfrentar não só aeroportos e aviões como também pontos turísticos nos quais manter uma distância mínima de outras pessoas seja uma tarefa difícil? Quem responde é André Coelho, gerente de projetos da FGV Projetos — a Fundação Getulio Vargas divulgou material sobre as perdas no setor turístico por conta da pandemia. “Não sei se passarão a ter medo, mas é esperado que haja um tempo de readaptação aos processos de viagem e quaisquer outros que exijam aglomeração para serem desfrutados. Enquanto uma vacina não for desenvolvida, as atividades em aeroportos serão de maior tensão para as pessoas. Umas viajarão por obrigação, mas as viagens de lazer ainda precisarão de um tempo para serem retomadas”, afirma.

Segundo o pesquisador da USP, muito provavelmente, num primeiro momento, as pessoas terão medo de viajar para evitar aglomeração. Ele explica que o medo deve permanecer por um tempo em função da insegurança que o vírus promove — e um grupo de turistas por si só é ameaçador. Manter distância será um procedimento de segurança. “Os aeroportos costumam estabelecer regras de segurança muito claras, os operadores dos diversos equipamentos turísticos terão que fazê-lo, também. Até que se chegue numa imunização da população, ou num controle da disseminação desse vírus, as instituições terão a responsabilidade de implantar medidas para proteger o viajante”, diz. Considerando que o grau de contaminação nos dias de hoje é muito alto, diz Reinaldo, qualquer equipamento turístico pode representar fator de risco. Segundo Pedro de Alcântara César, da UCS, a tendência é que as pessoas passem a viajar de máscara, como a imagem que temos atualmente dos japoneses. “E como as empresas aéreas vão solucionar a questão da alimentação? Para comer teremos de tirar as máscaras. Como vai ser? Sopa de canudinho? São questões que as companhias terão de pensar. Há coisas que ninguém tem a resposta ainda”, questiona.

Destinos muito turísticos, como Rio de Janeiro, Paris ou Veneza, por exemplo, terão de fazer modificações em sua estrutura nesse cenário pós-COVID-19, afirmam os especialistas. “Haverá necessidade de reformulação tanto da oferta, ou seja, dos atrativos, locais de hospedagem, alimentação e lazer, como do comportamento da demanda (turistas)”, afirma o profissional da FGV, ressaltando ainda que a promoção dos destinos também deverá sofrer novo planejamento, buscando mostrar a segurança sanitária oferecida por aquele destino, juntamente com as opções de pontos de visitação. “Inicialmente, é previsto que ainda haja necessidade de restrição de visitantes nos atrativos para evitar aglomerações. Mas ainda é cedo para prever como serão as medidas de adaptação”, diz. O pesquisador da USP complementa: “Medidas de segurança certamente existirão. Em equipamentos específicos, como hotéis, restaurantes, museus, meios de transportes é possível que os agentes de regulação criem protocolos. Atrativos turísticos divergem em forma e conteúdo, cada lugar deve buscar o melhor caminho para proteção dos turistas. Temos que considerar que os destinos são impares”, diz. O distanciamento e a redução do número de turistas que devem ocorrer nos destinos de maior aglomeração vem a calhar, acredita a professora da UnB. Lugares mais procurados pelo turismo de massa vêm sofrendo já há algum tempo por conta da degradação gerada pelo excesso de visitantes.

 
Cena típica de Veneza, na Itália, antes da pandemia. A cidade recebi cerca de 52 mil visitantes por dia, ou 19 milhões ao ano. Crédito da foto: Holger Schramm

Cena típica de Veneza, na Itália, antes da pandemia. A cidade recebi cerca de 52 mil visitantes por dia, ou 19 milhões ao ano. Crédito da foto: Holger Schramm

 

Segundo os especialistas ouvidos pelo rivotravel, é possível que no futuro próximo haja uma valorização de destinos que possam ser percorridos de carro, justamente para evitar aeroportos e aviões. “A tendência é que o turismo doméstico de curta distância tenha maior probabilidade de entrar na cesta de consumo das famílias, uma vez que as condições sanitárias permitam o deslocamento. Será normal optar por viagens mais ‘seguras’ no período de adaptação pós-COVID-19”, diz o gerente da FGV Projetos. Reinaldo Teles concorda. Ele afirma que, considerando que a tomada de decisão sobre os destinos, produtos e atrações turísticas depende de deslocamento e mobilidade em diferentes modais de transportes, as motivações dos turistas tendem a mudar. É possível uma redescoberta do território que está ao alcance do viajante, sem a necessidade de deslocamento à grandes distâncias. “Este momento pode ser muito importante para dar novos usos a velhos espaços, conhecer a oferta turística da sua cidade, estado ou região, o que geralmente não acontece. A busca por visitas mais curtas, novas formas de fruição, dá lugar a um novo turista, um turista mais consciente, capaz de estabelecer relações com o território”, analisa. O professor da UCS também pondera sobre o assunto. “Creio que a expectativa é a de aumento do turismo rural, do ecoturismo, que não comporta um grande número de gente, pois muitas pessoas vão querer evitar aglomerações”, diz o professor da universidade gaúcha. A professora da UnB ressalta outro ponto importante: “o turismo doméstico deve retornar como o preferido dos brasileiros também em função também da alta do dólar”. 

 
Especialistas acreditam que ecoturismo deve aumentar nos próximos anos. E já vinha em crescimento. Segundo o governo, nos últimos anos a procura de turistas estrangeiros pelo turismo de natureza cresceu 27,3% aqui no Brasil. Crédito da foto: Daniel …

Especialistas acreditam que ecoturismo deve aumentar nos próximos anos. E já vinha em crescimento. Segundo o governo, nos últimos anos a procura de turistas estrangeiros pelo turismo de natureza cresceu 27,3% aqui no Brasil. Crédito da foto: Daniel Walker

 

Reinaldo Teles acredita ainda que muitas viagens de negócios serão substituídas por reuniões online e teleconferências. “Podemos afirmar que vivemos num mundo de incertezas. Como afirma (o escritor polonês Zygmunt) Bauman, os tempos são líquidos’ porque tudo muda muito rapidamente. A concepção de viagens de negócios que temos parece ter ficado para trás”, diz, explicando que as plataformas online estão cada vez mais se ajustando à essas novas demandas de encontros virtuais. Todo movimento de negócios terá que se ajustar a essa nova fase, que dificilmente retomará ao modelo antigo, afirma. “Por outro lado, existem as demandas que não podem ser solucionadas nas plataformas, daí teremos sim de continuar com as experiências das viagens. O conceito de viagem não perdeu o sentido num mundo online e globalizado”, observa Reinaldo.

Pois é, cara leitora, caro leitor. O momento, como dito lá no começo desta matéria, é de incerteza. Mas como concluiu o pesquisador da USP, viajar é algo que não foi perdido (e nem se perderá). Há milênios o ser humano viaja, cruza mares, depois céus. Saímos do planeta Terra diversas vezes. Continuaremos viajando. Talvez não hoje ou amanhã. Mas um dia.