Histórias de acidentes não fatais e o que eles têm a nos ensinar #02 — Air Transat 236
A ideia de fazer essa série veio de uma inquietação. Apesar de nosso consciente saber que o avião é um meio de transporte super seguro, ganhando de lavada de outros como carro ou ônibus, ainda assim muitos se veem indo em direção à guilhotina cada vez que entram em uma aeronave. Visualizando aquela estrutura metálica envolta em uma bola de fogo com destino à morte. Acontece que muitos incidentes que ocorrem durante o voo sequer são percebidos pelos passageiros (e isso é tema para uma outra matéria) pois são resolvidos sem alardes pelos comandantes. E mesmo os de maior gravidade, que geralmente levam a um pouso de emergência, muitas vezes acabam sem vítimas fatais — ou mesmo sem feridos. Por isso, para tranquilizar as panicadas, panicados e simpatizantes, resolvi fazer essa série, para desmistificar a ideia segundo a qual todo acidente é fatal. Trazer à tona casos que, devido à perícia da tripulação ou à alta tecnologia do avião, não passaram de um grande susto. “Acidentes que ameaçam a vida (inclusive aqueles que não têm sobreviventes) são muito raros. Um evento desses só ocorre a cada 5,7 milhões de partidas”, afirmou, em 2017, em entrevista à BBC Brasil, Edwin Galea, professor da Universidade de Greenwich — ele é matemático, especialista em engenharia de segurança e desenvolvedor de simulações. ”Digamos que se uma pessoa voasse todos os dias, experimentaria um acidente catastrófico em algum momento dentro dos próximos 2,7 mil anos”, declarou ao mesmo veículo de comunicação Perry Flint, porta-voz da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo, da sigla em inglês).
Imagine você estar em um avião e todos os motores param de funcionar? Desespero? Sim, um pouco. Mas nem tudo está perdido. Acompanhe o caso do Airbus A330 da companhia canadense Air Transat, que planou por 120 quilômetros por falta de combustível e fez um pouso de emergência nos Açores, em Portugal. Mortos? Nenhum. O avião que fazia o voo Air Transat 236 detém o título do voo planado mais longo da história. O voo partiu de Toronto, no Canadá, às 20h20 do dia 23 de agosto de 2001. O destino era a cidade de Lisboa, capital portuguesa. Levava a bordo 293 passageiros e 13 tripulantes e era pilotado pelo comandante Robert Piché e pelo primeiro-oficial Dirk de Jager. Todas e todos provavelmente bem felizes em busca do solar verão europeu.
O voo ocorreu normalmente nas cinco horas iniciais. A primeira pista de que poderia haver algo de errado com o avião surgiu com um sinal de baixa temperatura e alta pressão de óleo no motor da direita. Pelo rádio, falaram com a equipe de manutenção da empresa, que orientou os pilotos a apenas monitorar a situação. O comandante interpretou aquele alerta como um erro de leitura dos computadores do Airbus. Momentos mais tarde, porém, surgiria mais um sinal de que havia um problema mais grave acontecendo durante o voo. O avião começou a emitir um alerta de desbalanceamento de combustível, ou seja, que havia uma quantidade de combustível muito superior no interior de uma das asas (que é onde ficam localizados os tanques). Robert Piché fez então o acionamento da válvula que permite a transferência de combustível entre os tanques.
Apesar disso, o nível geral de combustível estava cada vez mais baixo. Às 5h41, a tripulação solicitou ao controle de tráfego um desvio para o aeroporto mais próximo. Sete minutos depois, o comandante declarou emergência.
O Airbus A330 pegou então o rumo em direção ao aeroporto da Ilha Terceira, nos Açores, no Oceano Atlântico. Às 6h13, com o combustível dos tanques da direita zerado, o motor daquela asa apagou. Dez minutos depois, o motor localizado na outra asa, a da esquerda, também parou. O A330 se tornou um enorme planador. Isso tudo a 33 mil pés (mais de 10 quilômetros) de altitude. Sem a energia gerada pelos motores, diversos sistemas também deixaram de funcionar. As luzes da cabine de passageiros se apagaram. A aeronave ficou sem o sistema hidráulico principal, que opera os flaps, freios aerodinâmicos e spoilers, que auxiliam no pouso.
Com a perda da pressurização, todos a bordo precisaram usar as máscaras de oxigênio. O Airbus A330 estava a 120 quilômetros de distância da base aérea de Lajes, na Ilha Terceira. O comandante precisava controlar a razão de descida e a velocidade do avião. Tudo isso para que conseguisse chegar em segurança à Ilha Terceira, de modo a garantir que o avião chegasse à pista de pouso. Não havia margens para erros.
O Airbus descia 600 metros a cada minuto. Pelos cálculos feito pela equipe, daria cerca de 15 minutos de voo. Foi tempo suficiente para o avião chegar à base aérea portuguesa. Os pilotos ainda precisaram fazer manobras no ar antes do pouso, para reduzir a velocidade do avião. A aeronave tocou a pista às 6h45, a uma velocidade de 370 quilômetros por hora, acima da recomendada para essa situação. Sem o reverso dos motores, flaps e freios aerodinâmicos, o avião dependia totalmente do freio das rodas para parar. O excesso de pressão causou o estouro de oito pneus. O avião parou em segurança.
A investigação feta posteriormente apontou que tudo ocorreu por conta de um vazamento de combustível no motor dois,. O motivo? Uma peça incorreta havia sido instalada pela manutenção da Air Transat. O motor havia sido substituído por um motor reserva, de um modelo mais antigo. A empresa aérea autorizou o uso de peça de motor semelhante. Mas a adaptação não manteve uma folga adequada entre as algumas partes do motor. Essa falta de folga, alguns poucos milímetros, fez com o atrito entre as peças gerasse o vazamento
A companhia foi multada em 250 mil dólares canadenses pelo governo canadense. Até hoje, o voo da Air Transat mantém o título de mais longo voo planado em um avião comercial de passageiros.