Entrevista com o panicado #06

“Sempre achei aviões máquinas malucas e uma audácia tremenda do Homem ter inventado essa máquina. Todas vezes que peguei um voo, na hora da decolagem, pensava: ‘Como o Homem é um bicho audacioso! Nasceu sem asas e quer voar’. Meu primeiro voo, doméstico mesmo, para a cidade de Gramado, foi tranquilo. Confesso que achei estranho estar pisando num solo que estava suspenso no ar. Tinha um receio. Talvez um medinho pequeno. Mas nada limitante”.

 
 

O relato do jornalista paulistano Ricardo Lauricella parece OK para um panicado. Mas aí chegou o que ele chama de Dia D, quando tudo começou a piorar muito. E é um dia específico, sim. O medo de voar dele tem “certidão de nascimento”. Doze de julho de 2014. Era um voo entre o Brasil e o Uruguai. A viagem era surpresa. Até o último minuto ele não sabia aonde iria passar o final de semana. Sabia que não precisava de passaporte, então seria para um país próximo. Já dentro do avião anunciaram o destino. Ele achou bacana. Mas o que veio depois foi bem difícil.

No voo, poucas pessoas a bordo, talvez 50. Depois da decolagem, Lauricella, que sempre voa no assento do corredor, “ousou” olhar pela janelinha. “Nuvens carregadas e relâmpagos que para mim mais pareciam raios jogados por Zeus dada a audácia do homem em voar”, relembra. Foi então que num rompante o avião teve uma “queda” que parecia ter sido de uns bons metros, conta. Assustado, segurou na poltrona em uma atitude automática. Olhou ao redor e parecia que todos sentiram a mesma coisa. Segundos depois, com o ar ainda preso no peito, houve uma nova queda, diz o recém-nascido panicado. Daquela vez muitos gritaram, inclusive ele:

– AVE MARIA!

Uma moça logo atrás gritou:

– JESUS!

“Imagino que nas poltronas a seguir gritaram por Jeová, Alá e sabe-se lá o que mais”, afirma.

Naquele momento de angústia pura, Ricardo pensou que não queria morrer ali. Tinha ainda tanta coisa para fazer na vida. Séries para ver, livros para ler. “Guardei dinheiro, me privando de coisas e não usei. Não é justo. Não quero morrer”, mais uma vez pensou. E começou a chorar discretamente. Quando o avião pousou, ele teve dificuldades de sair do lugar, ainda paralisado pelo temor. Enquanto desembarcava, encontrou com o piloto. Perguntou o que tinha sido “aquilo”. O comandante tentou “tranquilizar”: “Não se preocupe. Balança, mas não cai”, falou para o passageiro mergulhado no mais puro horror.

O final de semana, que deveria ter sido ótimo, foi tomado por apreensão e outras sensações ruins. Ele chegou a pensar em voltar de ônibus. Fez muitas pesquisas sobre aviação no hotel, atitude comum entre panicados. Ao embarcar para o voo de retorno, lembrou de ter lido que os tripulantes estão preparados para lidar com passageiros que sofrem de aerofobia.

Aparentemente não era o caso daquela vez. Pois olha o diálogo que ele teve com um comissário logo após entrar na aeronave que o traria de volta ao Brasil:

“Moço, meu voo de vinda foi horrível. Esse voo de volta não vai cair, né?”

E ele respondeu:

“Depende! Você está de bem com Deus?”

Pasmo, Lauricella sentou em sua poltrona. Congelado de medo. O avião decolou e todo leve movimento que fazia era um gatilho para ele. Perto de sua poltrona, atletas que pareciam ser jogadores de um time de futebol uruguaio conversavam como se estivessem em uma sala de estar. Medo. Terror. Porém, mais uma vez, a aeronave pousou em segurança.

Surgia ali, naquela curta viagem ao país vizinho, um dos maiores medos de Ricardo: voar. Ele amava — e ainda ama — viajar. Quando era pequeno, as férias e feriados desse filho de um imigrante italiano com uma brasileira eram passados sempre nas casas de campo ou de praia da família. Viajar era algo que ele achava que se fazia apenas de carro. Mas aí entrou o avião na vida dele. A lista de lugares visitados já soma 21 países. E ele não pensa em parar por aí.

 

Ricardo Lauricella em Marraquexe, no Marrocos

 

Mas tem “essa tal da aerofobia” no meio do passaporte carimbado de Lauricella. “A altura e o ambiente fechado me incomodam, mas não me aterrorizam. Me amedronta o medo de morrer de uma forma trágica, coletivamente. A morte de qualquer homem nos diminui, porque somos parte do gênero humano, como disse John Donne. Mas a morte coletiva é um assombro. Se envolver um grande sofrimento então, nem se fala. Por mais que as chances sejam menores do que um acidente de trânsito ou de ser atacado por um tubarão, na hora do medo, sequer me lembro disso”, diz. Quando está a 12 mil pés de altitude, ele é tomado por diversas sensações. Tontura, taquicardia, suor, tremedeira, choro discreto. Diz que enfrenta esses sentimentos por pensar que vão achá-lo ridículo ser um homem adulto e ter medo de voar. Mas nem sempre consegue vencer ou “negociar” com a aerofobia. Ricardo já perdeu algumas oportunidades de viajar, inventando desculpas para passar longe de um aeroporto.

Como muitas e muitos panicados, o paulistano já procurou ajuda. “Comecei com psicanálise, depois terapia cognitivo comportamental, aí uma clínica toda tecnológica especializada em aerofobia, depois hipnose, constelação familiar, psiquiatra, uma terapia chamada biofeedback com resposta galvânica, depois neurofeedback em que era associada dessensibilização com ECG, padre, pastor, mãe de santo, aplicativos com inteligência artificial, psicoeducação, treinamento com piloto de avião, astrologia, runas, meditação zen, mindfulness”. De tudo um pouco (ou um muito). Isso sem falar em todos os livros, teses acadêmicas e pesquisas científicas, elenca o paulistano.

 

Ricardo durante sessão de tratamento de neurofeedback, em 2016

 

Para viagens longas, Ricardo usa relaxantes musculares ou remédios indutores do sono. Em caso de desespero, ansiolíticos. Mas tem uma coisa que, se não resolveu totalmente o medo, pelo menos aliviou o enorme pavor de estar acima das nuvens: viajar na classe executiva. Juntar milhas virou meta para alcançar esse upgrade na vida de um viajante.

O primeiro voo longe da classe econômica foi “pouco aproveitado”. Ele diz que, para quem é alto, o espaço maior dos assentos ajuda a diminuir a tensão. Mas em sua estreia na executiva ele não bebeu nada, não encostou na reclinição do assento e nem assistiu a filmes na TV com tela maior. Parecia que, caso ele se movimentasse um milímetro sequer, quebraria algo no avião e ele viria abaixo. “Claro que é loucura, mas naquele momento me parecia uma certeza”, diz.

 

O panicado durante passeio em Roma

 

Com o tempo, as coisas foram melhorando. Além do conforto, o acolhimento da passagem de executiva é como um abraço, compara. Com menos passageiros para “cuidar”, as comissárias têm mais tempo para se dedicar ao serviço de bordo. A conversa vai além do “chicken or pasta?” (“frango ou massa?”) tão comum na classe econômica. “Confesso que os comes e bebes também me entretém. Na chegada (ao avião), uma taça de algo (para beber). Aí um cardápio de coisas para escolher: entrada, prato principal, sobremesa, drinks e vinhos, depois lanche da madrugada, café da manhã. Em viagens de 10, 12 horas pode parecer proporcionalmente pouco esses 20, 30 minutos de entretenimento. Mas pra qualquer panicado esquecer, mesmo que por breves momentos, do medo e parar de sofrer, é glorioso”, conta. Mas seja onde estiver, sempre viaja no corredor. Assim, fica tomando conta dos comissários de bordo, para ver se eles estão tranquilos ou não e também por se sentir menos enjaulado, “preso” entre alguém e a janela.

 

Durante visita à cidade de Salamanca, na Espanha, em 2015

 

Voo perfeito, então? Nada disso. Ir ao banheiro, pegar um snack, levantar da poltrona para o vizinho do lado passar, pegar um fone de ouvido no bagageiro: qualquer coisa que o tire da posição sentada e com o cinto afivelado causa perturbação. Ele já chegou ao ponto de passar um voo de 12 horas sem ir ao banheiro, apertadíssimo. Para aliviar a tensão, usa fones com noise cancelling (que bloqueiam os barulhos do exterior) e uma playlist com músicas suaves para tocar. “Mas não suave a ponto de parecer um enterro, senão sinto que é a trilha sonora do meu”, diz.

Ele também descobriu alguns truques para enganar o cérebro panicado, como voar sempre com um bichinho de pelúcia como companheiro de viagem. O favorito? Uma zebrinha. “É uma coisa cafona. Mas a zebra de pelúcia acaba sendo um convite pra eu ver aquilo tudo como uma grande brincadeira. Por outro lado, como se eu tivesse que ficar equilibrado para cuidar daquela zebra. Também serve como um amuleto de proteção. Tem gente que gosta de ver um padre, uma freira, um famoso ou um bebê no avião pra se sentir seguro. Eu prefiro a zebra”, relata. E há toda uma “família”. Donatello é o preferido — ele chegou aos braços do dono em uma viagem para a Sicília, na Itália. De lá pra cá, Donatello acompanha o paulistano mesmo em viagens de carro. Mas ao longo dos anos a “turma zebrada” foi aumentando. Hoje em dia ele tem também tem a Chun Liu e o Indiana Jones. Uma vez, Lauricella esqueceu o “amuleto” em casa. Para sorte dele, encontrou uma pelúcia do animal listrado africano sendo vendida em uma loja do aeroporto. Quem disse que panicado não pode ser sortudo?

 

Na classe executiva de um voo da extinta empresa aérea Alitalia: o segundo drink seria para a zebra de estimação?

 

Além do simpático animal, ele usa outro artifício para driblar a aerofobia: livros para pintar. Ricardo conta que no começo achava isso ridículo. Mas insistiu até funcionar. Não é mágico, mas ajuda, em sua opinião. “Eu não chego a fazer nenhuma obra de arte, pelo contrário. É um horror. Uso sempre o mesmo estojo de lápis. Tem que ser eles, ficam junto do passaporte. Quando eles acabarem vou ter que inventar um TOC (transtorno obsessivo=compulsivo) de controle de voar novo. Esse TOC é completo. O mesmo livro, o mesmo estojo e, haja o que houver, uma página por viagem. Se a viagem acabar antes de colorir tudo, não importa. Coloco a data e o local de destino da viagem e não volto àquele desenho. Fecho o livro”, revela.

 

Livro para colorir: um companheiro de viagens inseparável (no topo, o país — EUA — e o ano, 2016)

 

Fechando o de pintar, mas abrindo tantos outros livros “da vida”, com muitas viagens. Sempre com a zebrinha de estimação ao lado. O rivotravel deseja bons voos para Ricardo, Donatello, Chun Liu e Indiana Jones. Uma família feliz.