Entrevista com a panicada #04

É possível que o medo seja algo ancestral? E como fazer para não passar isso para as gerações futuras? Nossa entrevistada dessa quarta edição do Entrevista com a panicada já ligou para a mãe para dar adeus em pleno voo, entre outras cenas de chorar de pavor. Vamos conhecer um pouco mais da jornalista Juliana Cézar Nunes, essa “curitibrasiliense” (nascida na capital paranaense, mas moradora de Brasília há três décadas)? Garanto que a história é boa.

 
“Conta aqui pro Salvatore tudo o que já rolou em termos de pânico em avião, Juliana…”

“Conta aqui pro Salvatore tudo o que já rolou em termos de pânico em avião, Juliana…”

 

Para entender o presente é sempre bom olhar para trás. O pai de Juliana é militar, então até os 11 anos ela cresceu passando por várias cidades brasileiras. “A gente fez oito mudanças, moramos na Amazônia, no Nordeste... Natal, Humaitá, Tabatinga, Juiz de Fora, Cachoeira do Sul, pegávamos voos pequenos dentro da Amazônia, mas eu não tinha medo”, relembra. Os pais dela, ao contrário, ficavam muito tensos, tinham medo de viajar em um mesmo avião e acontecer alguma coisa. Chegaram a pegar um voo cada um. O dia de voar era o momento da família botar as melhores roupas e levar malas muito grandes mesmo para viagens curtas ou de férias. O clima de tensão pairava no ar. “Meus pais foram viajar só na idade adulta, (vinham) de famílias muito simples, muito humildes, então não tinham esse habito. Minha avó paterna tinha muito medo de voar, acho que só foi viajar com mais de 80 anos”, diz, contando ainda que pais tinham receio dos filhos serem roubado no aeroporto. O pai, que não bebe, muitas vezes acabava pedindo uma cerveja ou uísque para dar uma acalmada. Na opinião de Juliana, ela acabou introjetando tudo isso, que viajar pressupõe um processo complexo e doloroso, e que era preciso levar o máximo de coisas que pudesse na mala. Ela acredita que tudo isso que vivenciou na infância foi refletir mais na frente, na adolescência e idade adulta, quando começou a sofrer de aerofobia. Aeroportos e aviões tornaram-se ambientes hostis.

E falando no passado, é preciso retroceder ainda mais, até a época do tráfico de africanas e africanos escravizados para o Brasil. Quando estudou na Universidade de Brasília (UnB), Juliana passou por uma aula que foi transformadora em seu processo de entender a própria aerofobia. A disciplina era Pensamento Negro Contemporâneo, ministrada por Edson Cardoso. O objetivo do professor, conta a jornalista, era contextualizar o que foi o tráfico negreiro, o tráfico de africanos escravizados para o Brasil, de modo que os estudantes tentassem sentir a dimensão do que foi esse processo. Ele propôs uma encenação, criando uma narrativa mais ou menos assim: “Imagina que você está lá em sua casa, em seu país, em seu contexto, na sua comunidade, e de repente chega uma pessoa, te amarra, te bota em um barco, e fala que você nunca mais vai voltar para sua terra, para sua família”. Juliana relata o que sentiu: “Já perto do final da aula, aquele clima de terror psicológico, o professor falou: ‘E agora vocês acham que vão embora? Vocês não vão embora, vocês não vão pegar seus filhos na escola, vocês vão ficar aqui nessa sala, eu vou amarrar vocês, vou levar vocês em um barco, vocês nunca mais vão ver sua família, nunca mais vão voltar’. E a gente sentado na cadeira. Muitas pessoas começaram a sentir faltar de ar, pela força do que ele tava falando, ele é escritor, pesquisador na área de comunicação, ele tem essa verve cênica”, relembra.

Todas e todos os estudantes saíram com a perna bamba da sala de aula. Juliana diz ter ficado super abalada e que começou a pensar que muitas das coisas que sentiu durante a narrativa eram sentimentos parecidos de quando ela ia viajar, da falta de ar e da tensão, e começou a perceber toda a carga ancestral envolvida na questão. “Minha tataravó por parte de pai era africana, veio escravizada para o Brasil, então eu fiquei pensando muito assim, que eu e meus familiares talvez carregássemos uma herança de uma memória genética que também acaba sendo passada de geração em geração pelos nossos comportamentos, como isso poderia ter a ver com o trauma da travessia, na qual os antepassados saíram de um lugar e nunca mais voltaram”, conta, destacando, nesse contexto, que o medo que perpassa todas essas experiências é justamente o de ir e não voltar. E que esse medo também é expresso na dinâmica de famílias negras, que fazem verdadeiras peregrinações para levar e pegar seus filhos nos aeroportos, escolhendo para tais ocasiões as suas melhores roupas e que chegam a promover encontros de despedida antes de viagens, mesmo aquelas muito breves. 

Ainda na adolescência, Juliana começou a adotar alguns hábitos que se relacionam com esse medo ancestral, como o de se arrumar toda para ir ao aeroporto, fazer malas grandes, de ficar muito nervosa com a proximidade do voo, além de ficar se despedindo das pessoas, marcando encontros na semana anterior à viagem. Ela não falava que aquilo era uma despedida, mas na cabeça de Juliana aqueles encontros representavam justamente um adeus. Ela sempre tinha a certeza que ia dar tudo errado no voo que pegaria dali a alguns dias.

 
Em União dos Palmares (AL), onde Juliana entendeu melhor a dimensão do tráfico e da escravidão africana

Em União dos Palmares (AL), onde Juliana entendeu melhor a dimensão do tráfico e da escravidão africana

 

Claro que nunca deu errado, tanto é que ela está aqui para contar a história. E que histórias! Juliana já se meteu em altas confusões dignas de Sessão da Tarde. Podem até parecer comédia, mas foram puro drama. Como o dia em que ela teve a certeza de que seria o último voo da vida, em uma aeronave da LATAM (na época TAM), pouco tempo depois do acidente em Congonhas durante um pouso em 2007. “Tinha prometido que não iria mais desembarcar em Congonhas, mas tempo vai, tempo vem, e lá estava eu em uma aeronave da TAM, tentando pousar, sem sucesso, em Congonhas. Eu tinha embarcado para receber um prêmio de jornalismo em São Paulo e achei que seria meu fim épico. ‘Jornalista vai receber o prêmio Herzog em São Paulo e morre horas antes de acidente de avião’. Já imaginava a manchete”, diz. O comandante tentou duas vezes pousar e arremeteu a poucos metros da pista. Disse que estava ventando muito e que teria de tentar o pouso em Viracopos, em Campinas. Tudo (mais ou menos) bem, até que um suposto piloto de avião que viajava como passageiro começou a fazer telefonemas para avisar que a aeronave tinha o mesmo problema do avião que caiu em Congonhas e que eles fariam um pouso de emergência. Falou para quem estava do outro lado da linha que a imprensa deveria ser chamada para o local e que a pista deveria ser coberta de sabão. A jornalista conta que vários passageiros ficaram assustados. “Eu tive uma reação diferente. Aceitei como verdade tudo que ele dizia e liguei pra minha mãe. Avisei que o avião ia cair e pedi que ela sobrevivesse àquele acontecimento, tocasse a vida e fosse feliz. Ela ficou brava, mandou eu desligar o telefone e disse que nada aconteceria. Eu disse que a amava muito e que amava meu pai. Eu achei que seria meu último telefonema. Não foi. Mas serviu pra alimentar meu pânico e a vontade de comprar uma daquelas chapas de identificação pra colocar no pescoço e facilitar a identificação do corpo em caso de acidente com carbonização. Pois pior do que acidente de avião é nunca mais encontrar o corpo de alguém que se ama, né? Então, certeza que é um trauma ancestral”, conta.

No rio Guaíba (RS)

No rio Guaíba (RS)

A jornalista já tentou desistir de várias viagens de trabalho, falando com as chefes que não era preciso sair de Brasília, que ela faria matéria sem viajar, por telefone. Mesmo com medo, ela vai e embarca. Nunca chegou a dar um grande vexame, pois, segundo explica, fica mergulhada em um processo interno, sofrendo sozinha, atenta aos olhares das aeromoças, o jeito que uma fala com a outra, e também na hora em que o comandante vai falar alguma coisa. Ela fica prestando atenção no papo das pessoas, nos barulhos, nos movimentos da aeronave. Quando nota alguma demora para pousar ou para ganhar altitude na decolagem, fica o tempo inteiro vendo sinais de que algo vai dar errado, já construindo na cabeça uma completa narrativa, toda uma historia, que o avião vai cair e que precisa mandar uma mensagem para as pessoas, de despedida. E quem grita junto também está com medo? Nem sempre. Juliana lembra de uma decolagem em Curitiba, sob chuva forte. Ela super tensa, claro. E a pessoa sentada logo ao lado começou a gritar. Pânico? Nem um pouco. Juliana nem percebeu, mas estava cravando as unhas no braço dela. Saiu até sangue das marcas. 

Por conta do trabalho, ela também já voou em um enorme avião do modelo Hércules, da Força Aérea Brasileira (FAB), para a África e Oriente Médio. Ela conta que naquele avião gigantesco, super barulhento, a pessoa se sente como se tivesse em um navio velho. Juliana ressalta que todo mundo fala que é um dos aviões mais seguros que existe. “Para um Hércules cair é super difícil, diferente de um helicóptero, que eu graças a Deus nunca voei. Por mais que eu tenha lido sobre isso, que o Hércules é seguro, mesmo assim foi bem tenso. E o barulho? Era barulho o tempo inteiro, então nessas viagens mais longas eu tentava dormir a maior parte do tempo pra meio que sair do corpo, né? Abstrair que eu tava ali”, diz. 

Namorado de Juliana e nossa querida panicada curtindo uma praia no Rio de Janeiro

Namorado de Juliana e nossa querida panicada curtindo uma praia no Rio de Janeiro

Outro voo super complicado foi em um pequeno bimotor, em uma viagem a trabalho com uma equipe da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a terra indígena Xavante Marãiwatséde (MT), na época em que eles estavam no processo de reintegração de posse (a viagem foi em um bimotor super esquisito e velho, diz Juliana). Ela viajou com três funcionários da FUNAI e um fotógrafo. “Aí a gente entrou no avião e o cara tentando ligar, e parecia que ele tava tentando ligar um Fusca. Estavam o piloto e o copiloto ligando o bimotor eu ouvi o copiloto falando pro piloto assim: ‘Bomba, bomba, bomba que vai’, bem tipo um Fusca mesmo, os caras bombando pra ligar o negócio, surreal. Em um certo momento, o piloto comunicou que só havia um motor funcionando. Foi uma das piores viagens que ela já fez. Na hora de pousar, a pista era de terra, o que só fez deixar a jornalista ainda mais panicada. “E o tempo inteiro eu pensando ‘cara, só tem um motor (funcionando)’. Foi tenso. Fiquei enjoada, com vontade de vomitar e muito medo, né? E nessa época eu não tinha filho ainda, graças a Deus, senão eu acho que teria entrado em desespero, então só pensava em meus pais, no sofrimento deles. Hoje eu não entraria naquele avião, essa coisa de ter filho acrescenta um outro medo, o de acontecer alguma coisa. Como é que vai ficar o seu filho, né?”, conta. 

O nascimento de Bento, de certa maneira, mudou a forma como Juliana lida com alguns medos. Ela conta que passou a tirar muitas fotos do filho, na hora de embarcar. Sempre em situações alegres, parte de um esforço para fazer da viagem uma experiência mais lúdica. “Tem um ritual meu e do Bento, quando o voo está para decolar, a gente fica meio que se despedindo das pessoas daquela cidade, a gente fica ‘tchau, tio Felipe;   tchau, tia Cris; tchau, Apolo; tchau, tia Carol’, mesmo que a pessoa não esteja ouvindo. É uma coisa pra gente, a gente vai se despedindo das pessoas que estavam naquele lugar”. 

 
Bento viajante: Juliana busca transformar as viagens aéreas com o filho em experiências lúdicas, para não passar para ele o medo de voar

Bento viajante: Juliana busca transformar as viagens aéreas com o filho em experiências lúdicas, para não passar para ele o medo de voar

 

A chegada de Bento na vida de Juliana a ajudou muito a encarar especificamente o medo que tem de viajar. “Me vi na necessidade de trazer novos registros pra ele. Não gosto de dar celular nem tablet, então levo livrinho, joguinho, brinquedo, coisa para ele pintar e ler. Fico muito ocupada em entreter meu filho. E quando ele era mais novinho, cuidando dele, dando o peito, deixando ele dormir. Me entrego bastante e isso ajuda a reduzir meus receios, eu não fico mais vendo o que as aeromoças estão conversando, esperando o que o piloto vai falar, ouvindo tanto os barulhos da aeronave e criando histórias em minha cabeça do que pode acontecer. Ele me ajudou a fazer da viagem aquele momento presente, momento que eu preciso estar presente para dar segurança a ele e transformar aquele momento em um momento lúdico, brincar, conversar, algumas vezes eu tiro meu turbante e a gente faz cabaninha, ele brinca com as crianças que estão por perto”, conta.

 
Juliana com os pais e o filho no aeroporto em São Paulo. Se o medo é ancestral, a cura vem dela também?

Juliana com os pais e o filho no aeroporto em São Paulo. Se o medo é ancestral, a cura vem dela também?

 

Antes de fazer viagens mais longas, Juliana continua marcando de se encontrar com pessoas, como uma espécie de despedida. Como ela geralmente marca as férias para o fim do ano, as tradicionais confraternizações de colegas e amigos acabam servindo como desculpa para os “até mais”. “Ligo para a minha avó e para minha mãe de santo, tenho esta tradição de ligar para as minhas ‘mais velhas’ e pedir a benção, apesar de não ter mais o peso que já teve pra mim, o ritual de viajar par mim ainda existe, eu só fui conseguindo lidar melhor com ele, reconhecer que eu faço isso e tentar fazer isso de uma maneira mais tranquila”, conta Juliana. 

Eu, particularmente, gosto muito dessa perspectiva em relação ao medo de voar – ou a qualquer outro: lidar bem com ele. Quando não é possível vencê-lo, que ele pelo menos viaje confortavelmente ao nosso lado. Sem excesso de peso. Só o tamanha justo. “Convivo com meu trauma e viajo muito, apesar de tudo e ainda sem a chapa metálica no pescoço”, conta Juliana. Sabedoria ancestral, essa.

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