Dez anos de aerofobia: há motivos para celebrar nossos medos?
Usamos geralmente o verbo “comemorar”para datas que nos remetem a sensações positivas: o nascimento de uma filha ou filho, a aprovação no vestibular, um emprego novo e mais estimulante e por aí vai. Quando a ocasião é ligada a algo triste, o verbo logo muda para “lembrar”: lembramos os nossos parentes mortos, as vítimas de um ataque terrorista ou de um desastre qualquer. Faz sentido. Mas como sagitariano exagerado que sou e pouco propenso a protocolos, digo: quero comemorar meus dez anos de medo de voar.
Eu contei como tudo começou na matéria Panicado: Day One — a primeira do rivotravel. Nela, narro como surgiu minha aerofobia. Vou resumir, para quem não quiser ler o texto. A última vez que vi meu pai vivo, andando, saudável, foi no dia 14 de setembro de 2010, quando ele e minha mãe embarcaram no aeroporto de Fiumicino, em Roma, com destino ao Brasil (não, o avião no qual eles estavam não caiu). Meu pai estava com câncer e chegando ao Brasil foi logo internado. Lembro da sensação terrível de despedida que senti ao ver os dois desaparecendo de minha vista no aeroporto romano. Quando sumiram do meu campo de visão, senti que ainda precisava de um último adeus e liguei pro celular dele para dizer que o amava.
Mas meu relato em Panicado: Day One parou por aí. O que eu não contei foi o que veio a seguir. Quatro dias depois daquela data, ou seja, dia 18 de setembro de 2010, estava eu passando pelo mesmo controle de segurança de Fiumicino para pegar um voo em direção a Paris. O embarque foi OK, nada de alarmante. Mas a decolagem… Pensem em um avião correndo na pista com o que mais parecia ser um tornado ceifando a lateral esquerda daquela lata voadora. Eu olhava para frente e só via as cabeças de meus colegas passageiros sendo arremessadas repetidas vezes e com violência para a direita, tamanha a força dos ventos. Ficou marcada em mim a luz que invadia o avião, uma luz dourada, de fim de verão, que também vinha da esquerda, passava através das janelas e inundava todo o espaço interno do avião com uma atmosfera celestial. Seria uma amostra grátis do paraíso sendo apresentada àquelas almas? Já que o tema é religioso, para completar a cena, sentado ao meu lado estava um padre, petrificado de medo. Coisas que a catolicíssima Itália nos dá de presente. Um padre com pânico da situação realmente não é um bom sinal (a relação entre medo de voar e fé já foi tema desta matéria aqui no rivotravel).
Pneus do avião desgrudaram do solo. Hora de relaxar? Claro que não. O vento parecia ter redobrado de força e subido à categoria de furação tropical fora dos trópicos, um tufão do sudeste asiático em plena Europa. Os minutos seguintes foram de puro sofrimento. Ninguém dava um pio. Quem rezou certamente fez isso em voz bem baixinha, talvez para não aumentar o medo dos demais.
E foi assim, caras leitoras e leitores, que minha aerofobia nasceu. Data: 18 de setembro de 2010. Signo: virgem. Local de nascimento: Roma (Itália). Mal veio à vida e já foi batizada, pelo padre temente a Deus e aos ventos sentado logo ao lado de mim.
Nesses dez anos, vivi muitas experiencias com aviões. Aceitei um emprego que me fazia ter de encarar voos com certa constância, muitas vezes no esquema bate-volta (horrível, ter de encarar ida e volta em um mesmo dia). Fiz algumas viagens mais longas, sempre com a ajuda de meu santo remédio que tira a ansiedade e dá sono. Tive voo completamente apagado, no qual dormi antes da decolagem e acordei após o pouso. Em outro, cruzando o Atlântico, não preguei o olho, tamanha a ansiedade.
Uma ocasião foi particularmente desafiante. Nas surpresas que a vida prega, tive de pegar um voo e não tinha a medicação. Foi tudo muito rápido, a notícia veio de noite e de madrugada mesmo já estávamos indo pro aeroporto. Não havia espaço para nós dois (eu e minha fobia) naquele avião, pois eu tinha de passar segurança para a pessoa com quem estava viajando comigo (sei que uso termos vagos aqui, mas o tema ainda é espinhoso para mim). Lembro de olhar pela janelinha, segundos antes da arrancada na pista de decolagens, e ver aquela luz diáfana azul-clara banhando de leve o horizonte. Devo ter pedido a todos os santos e orixás (mas, acima de tudo, a mim mesmo) que me dessem força. Eles ouviram. Eu ouvi. No meio da dor encontrei um amparo vindo da divina providência ou de minha própria força interior.
Acho que certos estão os mexicanos, que comemoram a vida e também o “lado de lá”. O dia dos mortos daquele país é motivo de celebração, com muita música, comida e bebida. Acho que temos de celebrar, celebrar, celebrar. As coisas boas e as não tão boas assim. O medo de voar é ruim demais, e se formos demonizá-lo, aí é que ele vira um bicho de sete cabeças.