Doses curtas #06
Périplo Salvador–Brindisi em três voos
Primeiro voo. Salvador–Rio de Janeiro. Aquela suadeira básica (e nem me refiro aqui ao ar-condicionado falho da empresa aérea). Falo, é claro, do meu pânico. Estou eu na minha poltroninha da sorte, na penúltima fileira, no corredor, lado direito de quem olha pra frente. Um senhor vê minha cara de desespero e puxa papo. Digo que tenho medo de voar. “Vai ficar tudo bem, meu filho”, ele responde. “Nossa, sério? Era só isso que eu precisava ouvir, já estou curado”. Mentira, não disse isso, mas a vontade era de jogar isso na cara do pobre homem que só queria ajudar.
“Eu estou indo pra África, encontrar minha mulher, que está trabalhando lá”, ele continua. Nossa, como eu odeio quem diz “África” como se fosse uma coisa só. Será que aquele homem não sabia que a tal África é vasta, diversa AND tem o maior número de países entre os continentes?
Bem, também não disse isso tudo, mas deu vontade.
Conversa vai, conversa vem, descubro que ele vai para Angola.
“Em Angola cai muito avião”?”, ele me pergunta.
Finjo um mal estar e viro pro outro lado.
Segundo voo: Rio de Janeiro–Roma. Já embarco completamente grogue do remédio. Me arrasto até o assento, que não era o meu da sorte, para meu azar. Uma mulher está na janelinha e abre o maior sorriso. “Moça, sou gay e estou cheio de remédio para ansiedade na cabeça. Zero possibilidade de flerte ou conversa banal”. Ok, também não disse isso. Ela fala, fala, fala. Eu escuto, escuto, escuto. O avião decola e nada da minha mais-recente-melhor-amiga parar a boca, nem quando o comissário serviu o jantar, uma massa ruim com molho ressecado. Resolvo afogar as mágoas nos doces e pegar a enorme embalagem de bombons Lindt que comprei no free-shop (ai, aquele Lindt vermelhinho me mata…). Ofereço para vizinha de viagem. E ela pega um. E pega outro. E não cala a boca. E pega um terceiro e já emenda no quarto. Antes que eu me visse completamente sem paciência (e sem bombons), simplesmente levanto, dou um sorrisinho, pego minha bagagem de mão no compartimento acima de meu assento e migro pro fundão. Lá, encontro um par de poltronas livres. Tô dizendo? Sou da turma do fundão. Deu até pra rever o lindo filme italiano Cinema Paradiso. Comendo o resto dos chocolates, claro.
Terceiro voo — Roma–Brindisi: depois de quase congelar no desembarque remoto em Roma (sem o finger, aquela sanfoninha que liga o avião diretamente ao terminal), hora de embarcar para Brindisi. Embarque remoto, claro (meu Deus, por que eles fazem isso com quem tem tanto remédio na cabeça e se arrasta como um condenado em direção à forca?). Tropeço na escadinha. Um senhorzinho me ajuda. Grazie, signore. O avião está assustadoramente vazio. Tipo, MUITO vazio, daqueles que você olha por cima da poltrona da frente (vazia, claro) e dá para contar as cabecinhas no dedo. Isso me dá um pouco de medo. Em épocas de aviões cada vez mais abarrotados de gente, um voo quase deserto foge da normalidade. E tudo que foge da normalidade já faz o apito panicado soar.
Mas desse voo não tenho o que falar, pois foi ótimo. Dormi o tempo todo, nem vi a decolagem. Desconfio até que decolei deitado nas três poltronas, contrariando todas as normas de segurança. Não brinque com um panicado medicado.