Avião com turbina na cauda: pássaro cada vez mais raro (ainda bem)
O começo de tudo. A decolagem rumo à minha aerofobia. Eu me lembro bem daquela tarde.
(Corte brusco: a American Airlines anunciou, no início do mês, a retirada dos últimos MD-80 de sua frota e eu suspirei aliviado. Mas calma que eu explico o que uma coisa tem a ver com a outra).
Já contei no rivotravel como passei a ter medo de voar (você pode ler aqui). Resumindo: estava eu em 2010 em um voo doméstico da Alitalia. Aproximação do aeroporto de Fiumicino, o maior de Roma. O avião, justamente um MD-80, jogava pro lado e pro outro, a ponta da asa ia pra cima e pra baixo. Eu olhava pela janelinha, naquele lindo e aterrorizante fim de tarde, e via a linha do horizonte que toda hora mudava de posição, sem parar quieta. E para completar o cenário, enquanto olhava pra fora e via céu-solo-céu-solo, meu olhar enquadrava também a asa direita. Sem turbina, como em todo MD-80. Aquilo me deu uma gastura, uma sensação de “tá faltando alguma coisa ali”, umas ideias tipo “isso aqui é um avião ou uma asa-delta? “. Questionamentos que sobrevoavam minha mente inquieta.
Não sei se vocês já repararam, mas alguns modelos de aviões têm os motores láááá atrás, próximos à cauda. No Brasil, as principais companhias operam atualmente com modelos que trazem a turbina presas às asas. Mas nem sempre foi assim. Até mais ou menos a década de 1980, com as finadas Varig, Cruzeiro, Vasp e Transbrasil, era comum ver nos aeroportos brasileiros, por exemplo, modelos Boeing 727, com três turbinas lá atrás (o último voo comercial de um 727 no mundo foi em janeiro deste ano, por sinal). Outros modelos similares no quesito “posição dos motores” são o Boeing 717, o DC-9 (já voei muito nessa verdadeira carroça voadora na Itália, na extinta ATI) e a linha CRJ da Bombardier.
É preciso um parágrafo especial para contar sobre o Caravelle, um dos primeiros aviões a jato de uso comercial. Foi lançado em 1955 e podia chegar a 800 quilômetros por hora, velocidade bem próxima a dos atuais modelos de aeronaves. O projeto francês foi assim batizado em alusão aos navios usados na época das grandes navegações, que chegaram à América e contornaram a África, alcançando a Ásia. O modelo fez sucesso e serviu como base para a Boeing e a McDonnel Douglas na concepção do 727 e do DC-9, respectivamente. A produção do Caravelle foi encerrada em 1973, tendo legado ao mundo da aviação 282 unidades. Meu pai contava que viajou várias vezes no modelo pioneiro pela Europa, e que era “o must”, o que havia de mais moderno na época. Confesso que acho o avião até simpático e, a julgar visualmente, deve ter sido um sucesso mesmo, pois tem formas bem interessantes, lembrando bem o conceito de futuro em voga em meados do século passado. No Brasil, voou com a Varig, Cruzeiro e a saudosa Panair. Um dado curioso: como Portugal teve papel de destaque nas navegações, a Sud Aviation (empresa desenvolvedora do projeto) permitiu que a portuguesa TAP usasse o nome traduzido, ou seja, Caravela. Ainda bem que a Airbus não seguiu a moda. Já pensou voar em um Ônibus Voador 320, por exemplo? “Para no próximo ponto que vou descer, motorista!”.
E como esquecer o Fokker 100, muito usado pela TAM (atual LATAM)? A imagem do modelo holandês ficou seriamente arranhada depois de um trágico acidente em 1996. O avião saiu de Congonhas (São Paulo) com destino ao Santos Dumont (Rio de Janeiro), mas caiu minutos depois, matando 99 pessoas, por uma falha no reverso (basicamente o avião decolou, com alta potência dos motores, mas com o “freio de mão puxado”). Depois disso houve uma série de pequenos incidentes envolvendo os Fokker 100 da TAM. Em 2002, em um mesmo dia (30 de agosto), dois voos da empresa fizeram pousos forçados no Estado de São Paulo: um sofreu uma pane e aterrissou em um pasto, matando uma vaca (tadinha da bichinha); o outro pousou em Campinas “de barriga”, com problemas no trem de pouso. Gente, é sério: dois casos no mesmo dia? Bizarro.
Tudo isso fez com que a imagem do Fokker 100 ficasse super suja no imaginário de passageiras e passageiros no Brasil. Anos mais tarde a TAM tirou todas as unidades de sua frota. A última companhia nacional a voar com um avião sem turbinas nas asas foi a OceanAir , que depois passou a ser conhecida como Avianca Brasil (e que esse ano bateu as botas, mas isso é outra história). A OceanAir voava justamente com o modelo holandês e, para tentar descolar a imagem de um “avião problemático”, usava o nome oficial “de fábrica”: MK-28. Eu cheguei a voar em um deles, em um voo Brasília—Guarulhos. Inclusive sentei lá no fundão, o barulho era enorme, pela proximidade com as turbinas. Ficava bem na altura das janelas. Uma visão terrível. Ainda bem que eu não era panicado na época.
Ainda hoje é possível, em alguns países, voar em modelos com “asas livres”, como os já citado MD-80 — mas isso é cada vez mais raro. O que eu acho ótimo, pois morro de medo de aviões assim. Sei que não é racional esse medo (aliás, algum medo é racional?), mas me dá um alívio ver as turbinas ali, no lugar certinho delas, embaixo das asas.
E por que essa notícia da aposentadoria dos MD-80 da American Airlines é tão simbólica? A resposta: a empresa norte-americana, que atualmente é a maior do mundo, era uma grande operadora do modelo, chegando a operar nada menos que um terço de todas as unidades produzidas pela McDonnell Douglas (daí o MD do nome). Eles eram muito usados pois representavam, na década de 1980, o que havia de mais econômico em termos de economia de combustível, um dos principais custos na aviação comercial. Hoje, comparados com concorrentes como os 737, era verdadeiros beberrões de combustível.
Aliás, é hora de me corrigir. O correto não é falar “turbina”. O termo correto para o motor aeronáutico popularmente chamado de turbina é turbofan. Tecnicamente, a turbina é apenas um componente do motor e o fan é o componente que é o real responsável pela propulsão da aeronave, sendo o fan o grande “ventilador” visível na frente do motor — a turbina dificilmente é notada por estar dentro do motor, na saída dos gases quentes. Quem me explicou tudo isso foi o coordenador do curso de engenharia aeroespacial da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) de Joinville, Rafael Gigena Cuenca. Mas o foco da entrevista, claro, foi sobre a gradativa saída dos ares dos aviões com turbinas (desculpa, professor Rafael, mas todo mundo usa esse termo) lá atrás, na cauda.
O anúncio da American Airlines da aposentadoria dos últimos MD-80 de sua frota marca o fim de uma era? “Acredito que pode-se dizer que sim, visto a mudança de paradigma de projeto tornou mais popular as aeronaves comerciais com motores posicionadas na asa. Porém tal conceito de projeto não deve ser extinto, visto que para aplicações como aviação executiva, os ‘jatinhos particulares’, tal configuração de aeronave ainda deve perdurar, como vemos no caso da linha Fenon da Embraer, o Legacy e o Citation III”, responde o coordenador da UFSC. Ele ressalta que as aeronaves executivas (os chamados “jatinhos executivos”) devem ter as portas próximas ao chão para não precisar de escadas externas para o embarque e o desembarque ou por necessitares de asa menores, o que também demanda trens de pouso menores. “Ambos os casos resultando em uma aeronave mais baixa. Por isso falta altura em baixo das asas para comportar os motores, forçando a posiciona-los na cauda da aeronave”, pontua Rafael.
Quem também explica, em um matéria em seu site, a diferença sobre onde os engenheiros aeroespaciais posicionam a turbina no projeto é Lito Sousa, autor do ótimo canal do YouTube Aviões e Músicas. “As asas de uma aeronave já são a parte estruturalmente mais forte de todo o conjunto, então nada mais lógico do que colocar os motores presos nela, ao invés de fazer reforços na fuselagem (que acrescentam peso) para instalar suportes de motores. Sem contar a simplificação dos sistemas de tubos de combustível que não precisam se estender da asa até a parte traseira para alimentar os motores”, escreveu em seu site. Ele prossegue dizendo que é muito mais fácil fazer manutenção em um motor que está próximo ao solo do que outro que está preso na cauda a vários metros de altura e que requerem escadas e equipamentos mais altos, além de um risco maior de acidente para o técnico.
O fato é que o atual modelo priorizado pela indústria para a produção de aeronaves é justamente com os motores nas asas. O coordenador da UFSC explica. “Basicamente, três motivos levam uma aeronave, ou frota de aeronaves, a ser aposentada: idade, quando as aeronaves são ‘geriátricas’, ou seja, passam a ter mais de 30 anos de operação; segurança, como no caso do Concorde; e viabilidade econômica, como atualmente nota-se para o A 380”. Por exemplo, observa Rafael, a última aeronave DC-9 foi entregue no inicio da década de 1980, justificando sua aposentadoria por idade. De forma parecida, o MD-80 teve sua produção iniciada em 1980 e encerrada em 1999, o que mostra que muitas aeronaves da frota já excederam os 30 anos, tornando tais aeronaves “geriátricas”. “Tal fato torna a manutenção mais cara pois aumenta a demanda por inspeções estruturais. Isso ajuda a tornar a aeronave inviável economicamente”, conclui.
Olha, pode ser TOC mesmo, mas prefiro as turbinas (ou turbofan, como me ensinou o professor da UFSC) ali nas asas. Bem presinhas, de preferência.