Alitalia: o fim de uma era (para a aviação e para mim também)

Na quinta-feira da semana passada, a Alitalia deixou de voar após 75 anos de serviços ininterruptos. E isso deixou uma pontinha de coração apertado em mim. Mas antes de explicar o motivo, vou tentar resumir a situação da outrora principal empresa aérea daquele país (é uma tarantela do italiano doido, mas vou tentar explicar tudo sem muitas voltas).

 

Alitalia vintage: vai ser assim que nos lembraremos da empresa, como uma companhia que ficou no passado

 

Na verdade é muito simples.

Fundada em 1946 (logo após o fim da Segunda Guerra Mundial) e famosa por transportar os Papas nessas décadas, a Alitalia já vinha há muitos anos sofrendo de uma grave crise financeira. E muitos anos mesmo — meu pai, que foi diretor-representante da companhia aqui no Norte e Nordeste nos anos 1980 e 1990, já me contava dos percalços da Alitalia (e olha que ele morreu em 2010). O golpe final parece ter sido dado pela crise aérea internacional enfrentada pelo setor por conta da pandemia do Covid-19. Em 2017 e 2019 a empresa recebeu empréstimos do governo italiano em um total de 1,3 bilhão de euro (mais de R$ 8 bilhões). E a Itália já havia anunciado que a torneira do dinheiro estaria fechada para novos aportes de dinheiro.

 

Airbus A330-200 decola do aeroporto de Fiumicino, em Roma. Crédito: Eric Salard/ Wikimedia Commons

 

Mas não vai ficar um buraco na história da avião comercial do país. Um vai embora, outra chega para ocupar seu lugar. Foi criada a ITA Airways, também estatal, só que mais enxuta em número de rotas, aviões e de funcionários (a Alitalia tinha uma quantidade enorme de profissionais trabalhando para ela, muito acima da média de companhias similares). A ITA, surgida nos acordos entre o governo com sede em Roma e a União Europeia, começa a voar com 52 aviões, todos vindo da antiga empresa à qual sucedeu. Dos 11 mil empregados da Alitalia, 2.800 foram aproveitados pela ITA e outros 5.750 devem ser reintegrados em 2022. O nome é ruim, né? E ainda pode gerar confusão com a ITA brasileira, fundada neste ano e que já foi tema de matéria no rivotravel (ler aqui). Já Alitalia significa “asas da Itália” (“ali” é o plural de “asa” em italiano). Na cauda, o grande “A” símbolo da empresa, estilizado com as cores da bandeira nacional (vermelho, branco e verde). Era bonito.

 

Projeção da nova pintura da ITA Airways. Olha, gostei… Crédito: divulgação ITA Airways

 

O último voo da agora extinta companhia foi o AZ1586, que partiu de Cagliari, na Sardenha, com destino a Roma, no aeroporto internacional Leonardo da Vinci–Fiumicino. Como manda a tradição passional italiana, houve muita comoção por parte de funcionários e passageiros. O comandante fez um brinde em homenagem à derradeira viagem. E teve muito protesto também, por conta do corte profundo no quadro funcional. Anteontem, foi a vez de um grupo de aeromoças fazer uma manifestação no centro histórico de Roma, tirando lentamente o uniforme e ficando apenas de roupa de baixo, em uma interessante performance.

 
 

A Alitalia surgiu como Aerolinee Italiane Internazionali (Linhas Aéreas Internacionais Italianas), em 1946. O primeiro voo foi só no ano seguinte, entre Turim, Roma e Catania, na Sicília. Em 1948, veio a estreia internacional, e foi um baita começo. O trecho foi o longo Milão, Dakar (Senegal), Natal, Rio de Janeiro e Buenos Aires (Argentina). Era o verdadeiro símbolo do milagre econômico do país no pós-guerra.

Como já disse, meu pai era funcionário da Alitalia, o que rendia à minha família muitas viagens para a Itália. Ainda pequeno, coisa de cinco anos, fui pra lá pela primeira vez, e guardo lindas memórias do verão na região de minha família, a Puglia (um mar lindíssimo). As idas eram frequentes, e minha mãe aproveitava as férias de meio de ano na escola para me despachar pra lá — vale lembrar que junho e julho já é o verão europeu. Acontece que o intervalo nas aulas era de apenas duas semanas, mas as viagens não duravam menos de um mês. Então era correr atrás do dever de casa acumulado na volta. Eu não reclamava.

A Alitalia nos anos 1980 e 1990 voava, no Brasil, para o aeroporto do Galeão, no Rio (Guarulhos, em São Paulo, ainda não era o polo atrativo de voos internacionais naquela época). Era uma delícia. O voo saía tarde da noite, e só a farra de ficar acordado até muito tarde já era fantástico. Eu já era um amante das companhias aéreas, e aquele fuzuê todo, o vai e vem, passageiros, tripulação, tudo aquilo era excitante demais. E ver os aviões pelas enormes janelas de vidro que davam para o pátio das aeronaves era um deleite. Lembro vividamente de olhar o colossal Boeing 747 (o jumbo) da Alitalia, com o bico bem pertinho de mim, à espera do embarque. Que lindo! Uma época sem pânico de voar.

 

Boeing 747-200 no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em novembro de 1984. Crédito: Pedro Aragão/ Wikimedia Commons

 

O voo era puro suco da nostalgia. Tenho na memória as grandes telas quadradas a bordo que exibiam filmes ao longo da noite (pelo menos durante o jantar e nas poucas horas antes do amanhecer). Os fones de ouvido eram super retrô (agora. Na época eram da moda). E era permitido fumar. Pense no fumacê! Os italianos estão entre as nacionalidades que mais curtem um cigarro. Os passageiros eram compostos por padres e freiras (vale lembrar que o Vaticano fica lá, incrustado em Roma), casais europeus que vinham ao Brasil adotar crianças (era um êxodo enorme) e turistas. Minha mãe conta também que serviam Nutella a rodo no café da manhã (a iguaria, tipicamente italiana, ainda era rara no Brasil). Eu certamente me esbaldava.

 

Fone de ouvido original da Alitalia, dos anos 1980. Esse da foto custa 20 euros (o equivalente a R$ 131) no site eBay

 

Uma imagem que ficou grudada em mim é a do deserto do Saara visto de cima. Aquela imensidão amarela, a perder de vista. E quando ele acabava, vinha o azul intenso do mediterrâneo. E já era sinal da aproximação do aeroporto Fiumicino. Chegando lá, era pegar as malas e procurar o embarque do voo para Brindisi, na Puglia. O trecho era sempre operado pela ATI (uma empresa do mesmo grupo e que fazia voos regionais e alguns internacionais). Aviões velhíssimos, bem me recordo. Ainda bem que eu ainda não era panicado, caso contrário seria um drama.

(Agora me dei conta de que ATI é o contrário de ITA. Criativos esses italianos…).

 

Douglas DC-9 da ATI em aproximação do aeroporto de Heathrow, em Londres, em dezembro de 1991. Crédito: Dean Morley/ Creative Commons

 

Já adulto, voei poucas vezes na Alitalia. A última foi em 2016, em um voo Zurique–Brindisi com conexão em Roma. Anos antes, voei Rio–Roma–Brindisi. Aviões novos, limpos, tudo muito clean. Senti falta do caos que eram os voos nos anos 1980.

Saudade das revistas de bordo Ulisse (amava ler e ir descobrindo o idioma), dos livrinhos mensais —com os horários de todos os voos da empresa — que meu pai trazia do trabalho (era uma época sem internet. Esses livrinhos tinham capas lindas, sempre com detalhes de quadros italianos).

 

Montagem com capas dos tradicionais livros com horários dos voos da Alitalia nos anos 1980 e 1990

 

Sou saudosista! Mas é claro! Por isso que o fim da Alitalia não poderia passar batido aqui no rivotravel. Lembrar da Alitalia é lembrar de minha infância, minha adolescência, dos sorvetes de 1.500 liras, dos meus amigos da praia, do baldinho azul. Quer coisa melhor?

AviaçãorivotravelComment