A prateleira

Caiu com o peso da memória

a reta tábua nigérrima de jacarandá que servia como apoio do vivido invisível

Lembranças de terras distantes, de tempos corridos

Espalhou-se pelo chão em cacos. Voou tudo para longe

Acordou a vizinhança que dormia sonos quietos

A água dos globos de neve, misturada aos minúsculos pedacinhos de isopor, penetrava em cachoeiras nas frestas do assoalho. Pequenos pratos pintados à mão. Bonecas de porcelana de vários tamanhos com trajes típicos

Era uma vez um altar de lembranças

Cada peça empoeirada de turvas nuances que habitavam o centro do quarto

escuro

eram sinais do tempo

Dias ensolarados na Cidade do Cabo, com o calor soprado da dobra entre o Atlântico e o Índico preso na muralha de pedra que abraça a cidade, deixando sobre a urbe o suor. Dias e noites de conversas e vinhos. O ano ainda era da separação de raças e líder negro preso

A miniatura do majestoso monte Kilimanjaro trazia lembranças dos animais que rugiam nas noites tórridas da Tanzânia. Um safari sem bichos mortos, a observação respeitosa feita de longe, sem incomodar os bandos. A mão suada na mão suada. As neves eternas do topo da montanha trazendo o inimaginável para aquele cenário de fogo na terra

Do Coliseu atual, semidestruído, sobrou apenas farelo feito na China. O outono romano em longos passeios pela margem direita do Tibre, uma taça de frizante barato no Trastevere, um bibelô da arena milenar comprado na mão de um exausto vendedor de Bangladesh. O império chegando a locais cada vez mais longínquos

O Canadá preso em uma garrafinha de xarope de boldo, que agora formava uma imperceptível poça viscosa no mesmo tom do chão. Curso de francês em Montreal, no frio vindo logo de cima, rasgando os altos prédios do centro. O amor inocente entre risadas fora de hora com o colega búlgaro

Caiu com o peso da memória dos outros

Era uma vez um altar de lembranças alheias

O calor da Cidade do Cabo sentido pela vizinha Marta

O estupor frente ao rinoceronte da sobrinha Helena

A lua de mel do filho e da nora antipática em Roma

A paixão juvenil do melhor amigo da faculdade

Não era falta de dinheiro. Não era medo de avião

Norma acordou assustada com o barulho, em um salto com toda a ansiedade acumulada nas últimas décadas

Achou que era ladrão. Achou que era pivete roubando graviola

Pensou que era a revolta comunista

Levantou-se pesarosa após constatar o estrago. Tantas memórias bonitas, assim, espalhadas

Varreu os cacos pesados por tanta vida dos outros e despejou tudo em um saquinho de supermercado

que repousará por algumas horas no canto do cômodo até ganhar a companhia de outros tantos sacos na calçada, à espera do fim