Aviões para a Copa do Catar protestam por direitos das pessoas LGBTQIA+

Com a chegada da Copa do Mundo de futebol masculino no Catar (ou Qatar, ambas as grafias estão certas), o país árabe entrou nos holofotes de vez. É bem verdade que há muitos anos ONGs denunciam as milhares de mortes, sobretudo por conta do calor e péssimas condições de trabalho, de operários nas construções dos estádios (a maioria estrangeiros de países subdesenvolvidos). Nas últimas semanas, porém, outra polêmica deu novos contornos às críticas: o mundo se deu conta que o Catar, com essa ligação intrínseca entre Estado e religião, não só é extremamente anti-LGBTQIA+ como pune com prisão e até mesmo a morte pessoas desse grupo. Por lá vigora a sharia (lei islâmica), que impõe rígidas normas de conduta e costumes.

 

Mapa mostrando o tráfego aéreo sobre o Catar nesta quinta (17): Copa começa no domingo

 

Os protestos ao redor do mundo, graças a Deus (com perdão do trocadilho) vieram com força. Um grupo de oito países europeus (Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, País de Gales e Suíça) se juntou no chamado grupo One Love (“Um amor”, em tradução literal, ou algo como “amor igual”) para ressaltar a importância de se lutar por tratamento igualitário entre as pessoas. Capitães dos times dessas nações disseram que vão entrar em campo nas partidas da Copa com braçadeiras (faixas ao redor do braço, indicando a posição do jogador) em alusão à causa LGBTQIA+, ou seja, com um coração nas cores do arco-íris, símbolo internacional da diversidade sexual e de gênero.

A Dinamarca chegou a anunciar um uniforme de treino especial, mas foi vetada pela FIFA, a federação internacional de futebol que, tradicionalmente, odeia qualquer polêmica que possa “manchar” a imagem da entidade e do esporte e, assim, espantar investidores mais conservadores e atiçar a ira de pessoas e movimentos sociais ao redor do mundo. Os EUA anunciaram que a entrada do centro de treinamento terá as cores do arco-íris. Grandes nomes da cena internacional se negaram a cantar na abertura da Copa, neste domingo, por conta do desrespeito aos direitos humanos. Entre elas estão Shakira (que compôs e cantou o tema musical da Copa de 2010, na África do Sul) e Dua Lipa. Ambas são musas das pessoas LGBTQIA+. O cantor Rod Stewart teria recusado mais de um milhão de dólares para se apresentar na sede da Copa de 2022.

Em outubro, a prestigiada ONG Human Rights Watch (HRW) relatou prisões e até abusos sexuais contra pessoas LGBTQIA+ no país. O caso mais recente, segundo a agência internacional de notícias AFP, aconteceu em setembro, quando quatro mulheres transexuais, uma mulher bissexual e um homem homossexual teriam sido levados a uma prisão subterrânea em Doha (capital catari) por funcionários do Departamento de Segurança Preventiva. Lá, foram agredidos verbalmente e submetidos a abusos físicos, com tapas, chutes e socos. Também pesam sobre as forças de segurança acusações o uso da violência para obter confissões, além de negar aos detidos atendimento médico, bem como a proibição de contato com as famílias e acesso à representação jurídica.

E a aviação, tema deste site, no meio disso tudo? Pois saiba que ela também pode voar alto quando o assunto é defender os direitos humanos.

 

Detalhe de Oscar, personagem LGBTQIA+ criado pela empresa Virgin e que está no avião usado para levar a seleção inglesa para a Copa

 

Na terça-feira dessa semana, o time inglês pousou em Doha. A viagem foi feito por um airbus A350-1000 da Virgin Atlantic. A companhia batizou o avião de “rain bow”, uma referência à palavra inglesa para arco-íris. Além disso, na fuselagem, perto da janela dos pilotos, havia o desenho de um homem empunhando a bandeira britânica (tradicional nas aeronaves da Virgin), só que usando nos pés, bem discretamente, é verdade, um par de tênis com as cores do arco-íris — o personagem criado pela Virgin se chama Oscar. Uma declaração sutil de que tanto a empresa quanto a seleção daquele país apoiam a diversidade de gênero e sexual. Além disso, a matrícula (aquelas letras que identificam o avião, geralmente na parte traseira) desse Airbus é GV-PRD. A escolha não foi em vão. PRD é uma abreviação de “proud”, ou seja, orgulho. Mas nem tudo são flores. No fim de setembro, começou a valer a nova política da companhia segundo a qual a tripulação de bordo estaria livre para escolher o uniforme que bem entendesse, independente da divisão entre masculino e feminino. No voo para Doha, entretanto, essa norma não foi aplicada. “Como parte de nossa política, concluímos uma avaliação de risco em todos os países para os quais voamos, considerando leis e atitudes em relação à comunidade LGBTQIA+ e expressões de identidade caso a caso. Após uma avaliação de risco, foi recomendado que a política não fosse aplicado no voo fretado de hoje (terça) para garantir a segurança de nosso pessoal” disse um porta-voz da empresa, ressaltando porém que a Virgin “acredita que todos podem conquistar o mundo”. Na internet, usuários da rede elogiaram a companhia, mas houve críticas à suspensão do uso livre dos uniformes no voo para o país árabe

 

Avião da Lufthansa com o “Diversity Wins” (“Diversidade vence”) na fuselagem transportou equipe alemã para o Catar

 

Se os ingleses são conhecidos por sua discrição, a companhia aérea Lufthansa chutou o balde e colocou a seleção nacional para pousar no Catar, na segunda-feira passada, a bordo de um A330 pintado com a frase “Diversity Wins”, ou seja, “Diversidade vence”. E não é pequenininho que nem o avião inglês, não. É bem grande, como é possível ver na imagem de divulgação acima! Há ainda uma série de personagens (com bastante destaque também) ao longo da parte frontal da fuselagem, unidos na diversidade, em representações de diversas etnias. A empresa declarou: “A Lufthansa é sinônimo de abertura, tolerância, diversidade e união das pessoas. A empresa permite que seus clientes de todas as nações e culturas se conectem e receba todos a bordo, independentemente de gênero, idade, etnia, religião, nacionalidade, identidade ou orientação sexual”.

 

Pose para as fotos no momento do embarque da equipe da Alemanha no avião especial preparado pela Lufthansa

 

Para aprofundar mais o assunto, entrevistei Taís Severo, doutoranda em comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cujos temas de interesse das pesquisas desenvolvidas estão a semiótica, os estudos de gênero e os trans studies. Ela explica que, na intersecção entre comunicação, gênero e sexualidade, existe um grande espaço de debate acerca de empresas levantando bandeiras sociais apenas como estratégia de marketing, sem continuidade e sem necessariamente serem inclusivas em suas políticas internas — uma prática conhecida como “pinkwashing”. As redes sociais, inclusive, têm sido um espaço onde essas táticas são expostas, ressalta a pesquisadora. “Cabe então a discussão sobre os efeitos isolados de cada ação comunicacional que apoie a diversidade sexual e de gênero. Eu tendo a reconhecer toda e qualquer iniciativa nessas bandeiras como positiva; mesmo que não sejam perfeitamente alinhadas à cultura corporativa de uma empresa (o que, evidentemente, é uma hipocrisia repulsiva). Isso porque a maior parte do público não se envolve na discussão interna, mas apenas recebe, absorve e reage à mensagem de inclusão e diversidade”, afirma Taís.

No caso em questão, ela percebe que as empresas aéreas foram ágeis e proativas em oferecer alguma resistência a um dos pontos levantados contra a realização de um evento esportivo mundial em um país que não reconhece os direitos ou a humanidade das pessoas LGBTQIA+. A pesquisadora acredita que essa é uma boa estratégia de marketing, já que esses públicos, constantemente sob risco de discriminação e violência, tendem a se sentir mais seguros e acolhidos usando produtos e serviços de empresas que são abertamente vocais ao tomar partido pela inclusão. “E é, também, uma tomada de posição política importante, visto que em um sistema neocapitalista não há qualquer obrigação de uma empresa em defender bandeiras éticas — basta notar que a maior parte delas prefere se manter em silêncio e não se envolver. Pessoalmente, vejo com bons olhos quando qualquer empresa assume o risco de perder clientes conservadores apoiando a diversidade e os direitos humanos”, ressalta.

Sobre o avião da Inglaterra, no entanto, Taís diz que a imagem aparece muito tímida, sendo necessário conhecer previamente o contexto do personagem Oscar para relacionar a ilustração às lutas LGBTQIA+. “Pode ser uma questão cultural — talvez os esforços de marketing ao redor de Oscar tenham o tornado popular o suficiente na Inglaterra para que ele carregue o signo da diversidade, mas do meu contexto, se eu não tivesse lido (uma matéria), não saberia. Em contraste com o avião da Lufthansa, é uma mensagem contida e que parece buscar evitar o confronto direto com as políticas discriminatórias do Catar. Aqui, especialmente, é necessário um suporte do jornalismo para chamar a atenção para a iniciativa — caso contrário, tende a passar despercebida como uma ilustração patriótica qualquer”, observa a doutoranda. Ela ressalta, no entanto, que os esforços de ambas companhias aéreas se somam; ao marcar qualquer posição de resistência, ao agir em conjunto (mesmo que por coincidência) um significado reforça o outro, e pode causar impactos positivos provocando outras empresas a buscar, também, um posicionamento abertamente inclusivo e igualitário.

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