Road trip na Nova Inglaterra
A tremidinha discreta no bolso da calça avisava: você tem uma nova mensagem. Estava no meio de uma palestra meio esvaziada e desinteressante da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), então não vi problemas em checar quem era. Era Rafa — editor do rivotravel — com uma mensagem deliciosa: “Super promoção AGORA na Delta para Nova York. Vamos?”. WOW! Claro! E foi assim, trocando mensagens com dados do cartão de crédito e opiniões sobre qual seria a melhor data que acabou nascendo uma das viagens mais espetaculares de minha vida.
E não estou falando de Nova York, não.
Explico. Por um capricho da natureza (e o termo vem bem a calhar aqui), acabamos marcando a viagem para o outono do hemisfério norte. E outono lembra o quê? Aquelas árvores com as folhas em tonalidades que vão do amarelo ao vermelho, passando pelo laranja. E isso tudo lembra o quê? Ouvi alguém falar em road trip?
E não há lugar melhor para se estar no outono do que na Nova Inglaterra, região entre Nova York e o Canadá e que engloba seis estados americanos: Maine, Vermont, New Hampshire, Massachusetts, Rhode Island, e Connecticut. A ideia então foi nem ficar em Nova York (não na ida) e do aeroporto JFK já partir em direção ao Maine, estado mais ao norte dos seis.
E quase caímos do outro lado do país.
Manter a atenção é muito importante nas horas de planejar uma viagem, amiguinhes. A principal cidade do Maine é Portland, que também é o nome de uma cidade no Oregon, literalmente do outro lado dos EUA. Sim, estávamos quase concluindo a compra quando nos demos conta do engano. Pior seria nunca ter dado por esse detalhe, pego o voo e horas depois pousar milhas e milhas distantes de onde realmente gostaríamos de estar.
Um atrativo da Nova Inglaterra no outono é a famosa Peak Foliage, ou seja, quando as folhas estão no máximo de seu esplendor de cores. Esse momento, que geralmente dura duas ou três semanas, varia de acordo com o lugar ou mesmo com as condições meteorológicas (se chover ou ventar muito, as folhas acabam caindo antes do tempo). Depois do Peak, as folhas ficam marrons e caem. É um frisson entre os americanos (e turistas dos outros países), movimentando a economia local — os números oficiais apontam que viajantes chegam a desembolsar três bilhões de dólares nessa época na região. Nesse link aqui é possível controlar a Peak Foliage na Nova Inglaterra. Foi graças a uma preciosa dica de um couchsurfer que invertemos a viagem, deixando Nova York pro fim, para não chegar tarde demais e assim aproveitar melhor a beleza das árvores do Maine e New Hampshire.
Oi, pequena folha
Então fomos. São Paulo — Nova York (JFK): não dormi nada (Ok, dormi entre algum lugar do norte do Mato Grosso e a Venezuela. Obrigado, entretenimento de bordo pela informação). Depois de horas no aeroporto nova-iorquino, chegou o momento de embarcar para Portland. E foi então que a mágica começou a acontecer. Foi surreal ver, lá de cima, aquele mar de árvores cujas folhas mais pareciam estar em chamas. Até meu medo de voar passou (também, com o tanto de remédio que tava na cabeça…). Na hora do pouso, quando o avião baixou de altitude, o deslumbre foi ainda maior. Um show da natureza (desculpa, chavão existe para ser usado às vezes). No momento do desembarque, eu disse a mim mesmo que cataria a primeira folhinha cândida caída no chão. E qual não foi minha surpresa quando encontrei uma logo que saí do avião, ainda no finger (sanfona) que liga a aeronave ao aeroporto? O que ela fazia lá? Como foi parar ali? Sabe Deus… Deve ser que nem entregar fitinha do Bonfim pros gringos que chegam a Salvador: um welcome gift.
Ainda no aeroporto de Portland, pegamos o carro que havíamos alugado pela internet.
E começou a viagem.
Preciso fazer um parágrafo aqui para dar o tom da coisa. A viagem toda durou cinco dias, e foi, como já disse, uma das coisas mais marcantes que fiz nessa minha vida até agora. A beleza dessa região nessa época do ano e algo de fazer o turista gritar de emoção. Eu e Rafa viramos duas crianças, admirados com o tanto de paisagens lindas e de folhas com as tonalidades mais improváveis balançando nas árvores e aos montes nos chão, prontas para chutar (e chutamos mesmo). Tiramos, sem brincadeira, milhares de fotos, várias poses e ângulos, e todas saíram lindas, sem precisar de filtro do Instagram, uma vez que as cores e a luz já eram perfeitas. E dirigir com o vidro aberto, sentindo o vento gelado cortando o rosto? Sentindo aquele ar puro que só? Pegar a estrada vendo milhares de folhas sendo derrubadas das árvores? Tudo era diferente para nós. A exuberância das cores do outono é algo tão diverso do que costumamos ver em nosso país. Nunca vou me esquecer de uma jovem, na recepção de um restaurante, que ficou em estado de choque quando soube que éramos do Brasil? “Vocês saíram do Brasil e vieram para cá? Meu Deus, aqui não tem nada, lá no país de vocês é que é lindo!”. Tadinha, mal sabia ela o quão embasbacados estávamos com as paisagens — que para ela devem ser tão banais — e como a beleza vem justamente da diversidade (LGBTT proud: check).
Voltando ao carro, a primeira parada foi num outlet em Freeport — um pouco ao norte de Portland. O Maine não é que nem New Hampshire (que não aplica taxas sobre a venda de produtos ao consumidor), mas outlet é outlet, então resolvemos aproveitar que estávamos no País do Consumismo. Depois de umas comprinhas necessárias (e de minha primeira de muitas lagostas — a região toda é grande produtora do crustáceo), seguimos viagem até nossa primeira couchsurfer, Maria (conhece o Couchsurfing? Uma rede social que conecta viajantes e anfitriões do mundo todo sem custo — falamos já dele no rivotravel: veja aqui). Coitada da simpática americana que nos recebeu, chegamos já de noite em sua casa na cidade de Belfast (não a capital da Irlanda do Norte — aliás, há muuuuuitas cidades americanas com nomes iguais a de outras europeias. Cadê a criatividade?) e estávamos tão acabados que nem deu tempo de conversar muito: certamente chegamos bocejando tanto que a moça entendeu e nos mostrou logo o quarto. Não antes de falarmos um pouquinho sobre o Brasil e o quão felizes estávamos de estar ali.
Azeeeeeedo
No dia seguinte, rumo ao Acadia National Park — um parque nacional americano no litoral do Maine com praias rochosas, bosques e a montanha mais alta da costa leste dos EUA: a Cadillac Mountain! Mas antes, uma parada essencial: tomar um tradicional café da manhã num desses restaurantes que aparecem em filme, com direito a pacote completo: ovos, bacon frito (para mim; Rafa é vegetariano), café aguado e, claro, panquecas com blueberry e Maple Syrup (o original, não aquele engodo de xarope que eles deixam em cima da mesa). Maple Syrup é um delicioso líquido adocicado extraído da árvore do Maple — lembra da folhinha da bandeira do Canadá? Pois é ela mesma. Trouxemos, sem exagero, umas vinte garrafas para dar de presente aos amigos.
Essa cidade na qual paramos se chamava Ellsworth, mas deveria se chamar Hellsworth (como “inferno” em inglês, “hell”). Explico: saímos rolando do restaurante e fomos procurar algum lugar para comprar postais (amo mandar postais quando estou viajando). Entramos em uma lojinha e nos deparamos logo com uma área inteira reservada a coisinhas com a marca Romero Britto. Meu Deus! O horror. Isso no interior do interior dos EUA! Tanta coisa boa para a gente exportar e a gente vai e taca aquele vômito colorido nos peitos da gringalhada?
Ok, superado o trauma, hora de seguir viagem. Uma coisa que fizemos (e que amo fazer em viagens) foi parar em um supermercado. Um mercado fala muito sobre o que é uma cidade ou país. Nesse caso, era enorme a sessão de abóboras (muito procuradas para fazer a decoração de Halloween, que seria dali a algumas semanas) e das “berries”: cranberry, blueberry, blackberry e por aí vai. Compramos logo um sacão de cranberries (uma de minhas bandas favoritas <3). Segura esse sacão na memória que já, já ele volta.
Bem, seguimos então para o Acadia Park, que tanto havia sido recomendado a nós pelos couchsurfers. O que logo me impressionou (e que depois comprovei nos demais parques visitados nos EUA em outras viagens) foi o nível de organização. Logo na entrada há um posto receptivo com todas as informações que o viajante possa necessitar: o que ver e onde ir (a depender de quanto tempo vai ficar no parque), onde se hospedar por perto, onde se alimentar, quais recomendações para a preservação do habitat etc. O Brasil perde tanto dinheiro não tendo um turismo estruturado a ponto de realmente receber bem o turista que chega dói.
Chegando em Acadia, encontramos logo uma praia com uma linda vista do alto do rochedo. Pausa para apreciar a paisagem. E comer as tais cranberries lá do parágrafo de cima. Você já chupou limão? Pois é pior. E a gente só falando “meu Deus, não pode ser possível”. Ainda conseguimos comer mais alguns (o saco tinha quase um quilo da frutinha — impossível comprar coisas em pequenas quantidades nos EUA), mas logo vimos que seria uma missão impossível continuar comendo aquele azedume. Que decepção. Só depois é que soubemos que cranberry é usada apenas no preparo de molhos e outras receitas, nas quais ela é cozida.
Acabei falando muito rapidamente sobre as lagostas. Nunca comi tanta lagosta em minha vida, em todos os tipos de receitas, cozidas, gratinadas, dentro de tortas salgadas, como salada fria. Aff que chega me deu fome agora. E as berries eles enfiam em tudo, como panquecas, doces, bolos e até refrigerantes (provei um divino lá).
Melancolia em alta altitude
Bem, voltando a Acadia. Fomos já no fim do dia pra Cadillac Mountain — pico mais alto do parque —, que prometia uma vista deslumbrante. E a gente ia subindo, subindo (de carro, claro, que não tenho físico de trilheiro). E subindo. E o sol indo embora, indo embora (“ok, perderemos o por do sol, fato consumado”) e a neblina tomando conta, tomando conta. Resultado: chegamos lá em cima e não dava pra ver nada. Mas como o Deus dos viajantes é bondoso, Ele nos brindou com uma experiência quase David Lynch: aquele lugar altíssimo, sem uma alma viva do lado, só eu e Rafa, envoltos em uma neblina assustadora e linda. Respiramos ar puro, passamos frio, fizemos altas fotos lokas e fomos felizes.
Saindo do parque nacional rumo ao próximo anfitrião couchsurfer, na maior chuva do mundo, passamos perto de Bangor — cidade em que a fictícia Derry dos livros de Stephen King foi baseada, onde são ambientadas muitas das histórias do escritor mestre do terror (nascido no Maine e ídolo de Rafa): A Coisa, Saco de Ossos, O Apanhador de Sonhos... Pelo sim, pelo não, evitamos passar por dentro dela. Estava tarde, uma tempestade rolando... Vai que.
Interior life
A viagem foi, assim, uma sucessão de descobertas e de ótimos hospedeiros. Dirigindo de dia e conhecendo novos anfitriões de noite (nosso próximo destino era o White Mountain National Forest, no estado de New Hampshire) só tivemos boas experiências. Ficamos até na casa da mãe de um dos fundadores do couchsurfing! E dormimos no quarto que era o dele. Uma honra. Em outra cidadezinha (cidadezinha? Um punhado de casas espaçadas umas da outras) ficamos hospedados num celeiro completamente reformado como casa de hóspedes e que mais parecia mostruário da Richards de tão impecável e lindo que era. Poder ter essa visão "de dentro" do cotidiano das pessoas que nos receberam foi realmente muito bacana. Uma vida distante dos grandes centros urbanos, mais simples, envolvidos por uma natureza tão presente — numa das casas até ajudei a recolher a lenha! Foi ótimo também poder transitar pelas estradas e ruas e ver as casas todas preparadas pro Halloween, que aconteceria dentro de semanas. Altas produções! Até nave espacial encontramos. Vimos também muitas daquelas pontes cobertas, formando verdadeiros túneis de madeira, que nem os que aparecem no filme As Pontes de Madison.
Sempre que encontrávamos uma paisagem linda (ou seja, quase sempre), parávamos o carro e deixávamos a emoção nos guiar, entrando floresta adentro, mas sempre com a preocupação de não ir tão longe para não acabarmos perdidos (#bruxadeblair). E também temendo animais como ursos, que costumam circular pela Nova Inglaterra. Deus que me livre topar com um. Foi assim que encontramos um rio paradisíaco, bem largo e caudaloso, completamente deserto. Não pensamos duas vezes: fomos congelar lá dentro. Tudo em nome da experiência. Depois, foi só lagartear deitados na pedra, aquecidos pelo "sol" de outono. Passamos ainda por regiões como o Mount Washington e Kancamagus Scenic Highway (estrada que guarda inúmeros pontos de observação cênica muito popular no outono) — ambos em uma área natural protegida chamada White Mountain National Forest. Nessa estrada, era grande o número de placas chamando a atenção para a presença de animais selvagens. Uma couchsurfer disse que não era raro ter o carro perseguido por alces (ainda deu a dica de não desviar pra algum canto da pista caso aparecesse algum no meio dela pois estes costumam saltar escapando no último segundo). Outra anfitriã disse que, se quiséssemos, poderíamos ir ver o rio ao fundo de sua propriedade, mas que deveríamos tomar cuidado para não dar de frente com um urso que costumava rondar a área. "Pena" que não rolou com a gente.
Deixando a floresta nacional em New Hampshire em direção ao litoral atlântico (dessa vez mais ao sul) do Maine, o ponto alto, literalmente, foi ter pego a trilha da Rattlesnake Mountain. Mas o suor da subida valeu a pena. A vista para os lagos da região era impagável. Foi lá que foi gravado o filme Num Lago Dourado (on Golden Pond, de 1981), com Katharine Hepburn, Henry Fonda e Jane Fonda.
O final Hopper
O fim de uma viagem tão linda foi coroado por uma paisagem digna do maravilhoso pintor americano Edward Hopper (1882 — 1967), que, na minha opinião, soube traduzir como ninguém a solidão no mundo contemporâneo. A cidade era York. E sua melancólica tarde sem sol, com vento frio, e seu único farol, pequeno, pacato, mas de uma dignidade ímpar, foram o final perfeito de nossa viagem.