Quem tem medo de avião turboélice? Panicadas desabafam e especialistas tranquilizam
Começo essa matéria em uma manhã abafada do “outono” baiano: 27 graus e o sol “comendo no centro” lá fora. No pé do meu ouvido, ligado na potência máxima, meu ventilador de mesa pequeno e velho de guerra. Acho que não existe jeito mais apropriado de escrever esse texto do que esse, com o zunido das pás girando freneticamente bem ao meu lado.
Quem tem medo de viajar em um turboélice? Muita gente! A ideia dessa pauta surgiu ao longo dos anos, quando fui vendo aqui no site, num comentário aqui, noutro ali, o pânico que assombra muitas passageiras e passageiros que precisam embarcar em um avião que não seja a jato — que é o modelo com o qual estamos mais acostumados, com “motores tradicionais” nas asas.
Ouvi para esse texto algumas panicadas (nenhum homem veio dividir seus medos, cuja possível causa já foi abordada aqui e aqui no site) e também com dois profissionais da área: Annibal Hetem, professor do curso de Engenharia Aeroespacial da Universidade Federal do ABC (UFABC); e André Pacheco, comandante de voos comerciais e vice-presidente da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (ABRAPAC). Ou seja, só gente gabaritada. De um lado, panicadas genuínas — eu super me solidarizo, pois já optei por uma conexão com tempo maior de espera em Riga (capital de Letônia) só para não voar em um turboélice, como relatei nesta matéria publicada aqui no rivotravel —; do outro lado, especialistas no assunto para explicar e desmistificar alguns dos pesadelos de quem tem aerofobia. Para não embolar o meio de campo, optei por primeiro apresentar os casos das panicadas e depois entrar com as informações técnicas.
As panicadas desabafam
As histórias são naquele esquema “rir pra não chorar”. Vamos abrir os trabalhos com o caso da advogada pernambucana Renata Lemos. O último voo em um turboélice foi em setembro de 2019, durante a Lua de Mel. O destino dos sonhos? A Polinésia Francesa, no oceano Pacífico. Mas ela não imaginava que, para voar entre as ilhas do arquipélago, era necessário pegar um turboélice. Foi somente quando já estavam planejando a viagem que o marido de Renata se deu conta que ou pegavam um turboélice para fazer o trajeto entre as ilhas do Taiti e Bora Bora ou então tinham de fazer o trajeto em um navio cargueiro. Pois a ideia de ir pelo mar, pegando um “chique” navio cargueiro, foi mantida até um mês antes da viagem e só não foi a opção realizada porque não conseguiram concluir a operação, pois a burocracia era enorme, relembra a advogada.
“Então, lá fomos nós. Fui curtindo a viagem (até a Polinésia Francesa) e fingindo que não era comigo. Até que chegou o momento. Desde o aeroporto as coisas pareciam que “não se encaixavam”. Não tinha assento marcado no avião, quem entrasse primeiro escolhia as poltronas, dentro do avião (tão pequeno) as comissárias pediam para nos espalharmos a fim de balancear o peso. Os assentos em si valem um texto à parte (todos de metal sem acolchoado), o banheiro tão bizarramente pequeno. E aquele turboélice que parecia que ia parar de rodar a qualquer momento. De alguma forma a vontade de realizar aquele sonho me deu coragem e foi maior que o medo e eu fui. Mas fui pensando que se acontecesse algo os dez anos de natação poderiam ser úteis e que o fato de ter várias ilhas por perto poderia facilitar. Ao decolar, percebi que estava na janela ao lado da hélice. A beleza era memorável. Quando fecho os olhos posso ver aquela imensidão azul turquesa… e a hélice ao meu lado. Senti um misto de expectativa, medo, superação, ansiedade e gratidão”, relata a pernambucana.
Para a geógrafa mineira Izabela Aquino, a sensação de voar em um turboélice também é de pavor. “Do tipo que você pensa se deixou suas coisas arrumadas caso dê tudo errado e alguém tenha que esvaziar sua casa, se vão conseguir a senha do banco e do e-mail, essas coisas bem normais na caminhada para o embarque do voo rumo ao iminente fim. O tamanho do avião já parece com foto de capa de jornal anunciando a tragédia, as hélices dão a impressão de que vão engasgar ou bater num urubu e quebrar um pedaço enquanto a gente olha pela janela, e o barulho faz parecer que estamos numa máquina de lavar roupa no ciclo de centrifugar. Ainda bem que raramente pego (um turboélice), mas já digo que, mesmo sendo por trechos curtos, é a pior parte da viagem. Eu sempre mando mensagem de ‘te amo’ pra família logo antes de ligar o modo avião, só pra garantir”, afirma a geógrafa. Para ela, viajar de turboélice é como embarcar em um desses aviões saídos do clássico filme Casablanca. “Só que sem o romantismo. Só falta aparecer um cara de macacão cinza pra se pendurar na hélice e fazê-la girar enquanto mastiga fumo, pelo menos é essa a cena que eu vejo na minha cabeça”, compara Izabela.
Quem também torce o nariz para modelos turboélice é a revisora de textos alagoana Camila Lins. “Lembro que na época que voei num turboélice eu ainda não tinha pânico de voar. Foi em janeiro de 2015, em um voo de Salvador para Vitória da Conquista (BA), acho que com mais ou menos uma hora de duração. E mesmo sem ter pânico – eu, aliás, tinha zero medo de voar –, bateu aquela ‘insegurançazinha’ quando vi que o avião era um daqueles (sem ser a jato). Mas segui firme no meu destino para a morte mesmo assim. Lembro que quando entrei achei tudo meio apertado, meio claustrofóbico até. Não dava pra ficar em pé confortavelmente – e olha que não sou alta –, o teto é baixinho e só tinha duas poltronas de cada lado. Fiquei com a adrenalina a mil na decolagem e na aterrissagem, porque dá pra sentir tudo (de forma intensa): quando balança, balança demais; quando aterrissa, parece que não vai conseguir frear. Não descreveria como uma experiência muito agradável, não. Hoje pensaria mais que duas, que dez, que dez milhões de vezes antes de encarar essa possibilidade (de voar em um turboélice)”, diz a alagoana. Depois dessa experiência, ela já fez algumas vezes o mesmo trajeto entre as duas cidades baianas, mas por terra, encarando mais de oito horas de estrada, dentro de um ônibus.
Renata Lemos é outra que troca a via aérea pela terrestre sem pestanejar. “Há uns dois anos eu e meu então futuro marido tínhamos um casamento para ir em Santa Maria (RS) e como eu já tinha medo de voar, decidimos pegar um ônibus de Porto Alegre para lá. Eram cerca de cinco horas (por estrada) e menos de uma hora de avião, mas tinha que ser turboélice. Moral da história: fui preparada para o ônibus. Vi filme, dormi, lanchei. Deu tudo certo, nem levei em consideração pegar o avião. O casamento foi lindo”, rememora.
As experiências traumáticas de Renata são antigas. Ela afirma que, quando tinha 15 anos, foi com uma tia e dois primos comemorar a data nos EUA. A viagem foi inesquecível – e a volta mais ainda, diz a advogada. A companhia aérea cancelou o voo de Orlando para Miami e ela e os parentes ficaram horas no aeroporto tentando resolver o impasse. Quando a empresa finalmente veio com uma solução, a surpresa: pegar um turboélice até Miami, de moro a não perder o voo para São Paulo, relata. “Beleza! Nessa época eu não tinha medo de voar, muito pelo contrário, era umas das coisas que mais gostava no mundo. Só que assim: tudo tem limite. Ao chegar na pista rumo ao avião percebemos que se tratava de um turboélice de quatro lugares mais o assento do piloto. Parecia coisa de desenho animado em que o piloto é o carregador de malas, o comissário, o piloto e o passageiro, tudo ao mesmo tempo. Foi quando nos entreolhamos e ficamos ali paralisados. Resultado: voltamos para o aeroporto e viramos a noite lá mesmo até que nos colocaram em outro voo de verdade no dia seguinte”, lembra Renata.
Atualmente, Izabela, a geógrafa mineira, mora em Natal (RN) e a família está toda em Minas Gerais (Belo Horizonte e interior). Ela costuma viajar com frequência pra visitar e passar férias com familiares. Recentemente, comprou o voo Natal – Belo Horizonte com conexão em Recife, mas sem ter visto as informações de aeronave dos trechos na passagem antes. “Porque só tem graça descobrir na hora de embarcar, né?”, brinca a geógrafa. Ela continua: “Mas eu já devia ter percebido, se pedem pra você descer muita escada num aeroporto até chegar numa parte mais antiga, com cara de rodoviária e poucas cadeiras, gente sentada no chão e você tem que embarcar andando na pista até chegar ao avião, dificilmente vai ser tranquilo pra quem tem medo. Ainda bem que é um voo curtinho e mal deu tempo de comer as balinhas (servidas a bordo)”, conta a mineira. Ela jura que jamais entrará em um tipo de avião que ela apelidou de “miniatura”. “Graças a Deus, ao universo e à falta de riqueza minha e dos amigos – que não têm fazenda ou resort pra eu visitar –, nunca voei em avião miniatura, não. Acho que eu nem vou voar, a não ser que seja pra ter alguma experiência muito mágica bancada por patrocinadores que não existem e, ainda assim, vou tentar descobrir se dá pra ir de outro jeito”, ironiza.
Achei os relatos bem divertido e me identifiquei com todos. Mas vamos passar para a “fase 2”, que é a desconstrução de certos estigmas?
os especialistas tranquilizam
Antes de mais nada, tanto um turboélice quanto um avião a jato possuem turbinas, explicam o professor da UFABC e o comandante e vice-presidente da ABRAPAC. “Quando queimamos combustível, o resultado é uma quantidade de gás bem quente e a alta pressão. Fazemos este gás quente passar por uma roda de pás, que é a turbina. O resultado disso é que o gás empurra as pás e faz a turbina girar. Podemos fazer uma comparação com um ventilador, mas com muito mais ar e muito mais pressão. Se colocarmos no eixo da turbina uma hélice, teremos um turboélice. Por outro lado, se deixarmos o fluido sair do outro lado com alta velocidade, teremos um motor a jato”, compara Annibal Hetem, da UFABC. Ele ressalta que não há motivo para ter medo de aviões que não são a jato: todas as aeronaves em uso comercial são aprovadas em testes rigorosos, estabelecidos por entidades de aeronáutica e engenharia e sob condições estabelecidas e padronizadas. Assim, em termos de segurança, tanto os turboélice como os demais são igualmente seguros.
O comandante André Pacheco explica que as aeronaves turboélices voam a altitudes aproximadamente 50% mais baixas que aeronaves a jato. Estes últimos operam quase sempre acima de 30 mil pés (9,1 mil metros) em rotas de mais de uma hora de duração e os turboélices voam entre 15 mil e 20 mil pés (4,5 mil metros e 6 mil metros). Geralmente nessa faixa atmosférica mais baixa, pontua André, é mais comum o efeito turbulento das trovoadas, vento e formação de gelo, porém as aeronaves possuem radar meteorológico para desviar das áreas mais desconfortáveis aos passageiros e passageiras. Ainda sobre o assunto, o professor Annibal Hetem explica que o efeito propulsor de uma hélice depende da densidade do ar. Nas altas altitudes, a densidade do ar é muito baixa para que uma hélice seja eficiente. Por outro lado, um motor a jato consegue trabalhar em baixas densidades — ou seja — maiores altitudes. E sobre as turbulências sentidas em aviões menores, o especialista da UFABC dá a resposta: os sacolejos podem estar ligados ao tamanho da aeronave. Um avião maior, como os da Boeing ou Airbus, tem grandes asas, que somadas a outras características estruturais ajudam a reduzir a trepidação. Mas é sempre bom lembrar: turbulência causa uma sensação de desconforto e medo em alguns, mas não derruba aeronaves, como já explicamos aqui no site.
E qual o motivo que leva uma empresa a optar pelo uso de turboélice no lugar de jatos? A resposta é dada pelo vice-presidente da ABRAPAC. Ele afirma que cada aeronave é projetada para um tipo específico de operação. Os turboélices são adequados para rotas de baixa densidade de passageiros (entre 30 e 80 assentos) e pistas menores, típicas em cidades pequenas. Sendo assim, é economicamente inviável colocar uma aeronave a jato, em geral para mais de 100 passageiros, para uma operação em uma pequena cidade. Por isso que se utiliza até hoje essas aeronaves. “O leitor pode se perguntar, mas não podemos utilizar um ‘jato pequeno’? A resposta é: nem sempre. Pode se tornar muito caro. Por isso, aeronaves a jato, de maior custo de aquisição e manutenção, são utilizadas em rotas nas quais a densidade de passageiros seja mais significativa”, diz.
André Pacheco usa um exemplo: imagine que seja preciso uma aeronave que faça um rota de 400 quilômetros, com movimento de 80 passageiros por dia. Um jato fará esse trecho em 45 minutos; um turboélice, em 60 minutos. Porém o turboélice tem um custo operacional 50% menor. Nesse caso, a melhor opção é o turboélice. “Agora outro exemplo. Preciso de uma aeronave que faça um rota de 1.400 quilômetros, com movimento de 200 passageiros por dia. Em um jato, farei esse trecho em 1h35min, e em um turboélice em 3h10min. Porém, devido à capacidade, com o turboélice terei que fazer três viagens. Qual melhor opção? Aeronave a jato”, conclui André.
E já que falamos nisso, qual a melhor escolha, afinal? Não viajar? Encarar as estradas (que estaticamente são muito mais perigosas que viagens aéreas)? Pedir proteção divina e encarar um turboélice? Não estou aqui para julgar ninguém, afinal cada um sabe onde o sapato aperta. Mas espero que, lançando um pouco de luz sobre o assunto, o rivotravel tenha ajudado a desmistificar certas questões ligadas aos turboélices, esses aviões temidos e incompreendidos…