O medo que os homens têm de ter medo — parte 2: dando voz aos panicados
Olá, panicadas e panicados, como vão? Vamos continuar falando sobre esse tema que é urgente em nossa sociedade, a masculinidade tóxica? A primeira parte da matéria — essa conversa deu muito pano pra manga — você pode ler aqui. Esse assunto é muito importante de ser lido e discutido não apenas pelos homens mas também pelas mulheres, que muitas vezes sofrem com suas consequências ou até reproduzem e naturalizam certos comportamentos de parentes homens, amigos e colegas de trabalho por medo ou falta de conhecimento. E isso tudo também tem relação com o medo de voar, como vou explicar lá embaixo.
Mas se você caiu aqui de paraquedas (paraquedas, avião, tudo a ver…), é bom se situar um pouquinho. O que é essa tal de masculinidade tóxica que — ainda bem — tanto falam ultimamente? Pego carona em um material produzido pelo ótimo instituto Geledés, que há mais de 30 anos trabalha questões como gênero, entre outras: “Homem não chora, não expressa sentimentos, homem de verdade é bruto, não pode cuidar da aparência. Quantas vezes você ouviu como deveria se comportar? Quantas vezes outras pessoas te disseram como você deveria se sentir e se expressar? Quantas vezes você já não se sentiu preso em ideais impostos para se sentir mais homem?”. Acho esses questionamentos bem interessantes e vitais na contemporaneidade.
Ainda segundo o Geledés, a masculinidade tóxica é uma descrição estreita e repressiva da masculinidade que a designa como definida por violência, sexo, status e agressão. É o ideal cultural da masculinidade, no qual a força é tudo, enquanto as emoções são uma fraqueza. Alguns do efeitos da masculinidade tóxica são a supressão de sentimentos, encorajamento da violência, falta de incentivo em procurar ajuda, até coisas ainda mais graves, como perpetuação e encorajamento de estupro, homofobia, misoginia e racismo. E é justamente na supressão de sentimentos que entra o medo de voar: muitos homens têm dificuldades de admitir que passam pelo problema. Sofrem sozinhos, sem voz. E isso não é bom para ninguém.
Se na primeira parte dessa matéria o rivotravel discutiu essas questões apontadas pelo Geledés, agora é hora de ouvir o que os próprios homens panicados têm a dizer sobre o assunto. E também fomos consultar dois especialistas. A psicóloga Solange Signori Iamin é desenvolvedora do Eu Voo sem Medo, programa de tratamento para o medo de voar. Já Ricardo Wainer é psicólogo, psicoterapeuta cognitivo-comportamental e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com experiência, entre outras áreas, em transtornos de ansiedade. E assim como a primeira parte da matéria, contamos mais uma vez com a participação do fotógrafo André Souza (ler mais sobre o artista no fim do texto).
Depois dessa escala entre as duas partes da série “O medo que os homens têm de ter medo”, todos prontos para a continuação da viagem? Então vamos começar sabendo o que uma especialista no assunto tem a dizer.
Solange Iamin costuma receber várias ligações telefônicas de homens perguntando sobre o tratamento, mas que não chegam a iniciar as sessões. Ela acrescenta que algumas esposas também entram em contato pedindo ajuda para seus maridos, porém eles não aceitam e preferem não viajar, abdicando do lazer em família em lugares que não se pode ir de carro. “O que se observa é que as mulheres não se sentem envergonhadas de contar que têm medo de voar, ao contrário: não só contam como pedem ajuda à tripulação, aos amigos e procuram um profissional para ajudá-las a resolver a situação”, observa. Porém os homens, continua a psicóloga, não querem que saibam que estão se tratando (o famoso “o que vão dizer de mim?”, diz Solange). Os pacientes aparentam ter uma preocupação muito grande com suas imagens na sociedade e por este motivo muitas vezes sofrem calados, pois se sentem julgados e acabam não expressando seus sentimentos. Por consequência, não procuram ajuda e inventam desculpas para dar aos amigos ou no trabalho quando precisam viajar a serviço e não conseguem, por medo. “Atendi alguns homens que perderam possibilidade de ascensão profissional porque teriam de mudar de Estado ou de país e desistiram por simples medo de voar”, observa Solange.
Um dos pacientes da psicóloga é João Oliveira (o nome é fictício, pois o entrevistado preferiu não se identificar). “Algumas vezes o meu medo de voar me impediu de realizar algumas tarefas, em especial compromissos de trabalho. Busquei me apoiar em algumas desculpas por vergonha de assumir o medo de voar para os colegas de trabalho”, conta João. Segundo ele, voar hoje em dia é algo natural para a maioria das pessoas, e sentir medo, em especial em um ambiente corporativo, faz com que pessoas que sofrem de aerofobia se sintam limitadas e até inferiores em relação a quem não sofre o mal. “Acredito que, em virtude disso, sentimos vergonha”, diz João, que já buscou ajuda terapêutica e classifica a experiência como extremamente positiva. “Com ela, consegui enfrentar os meus medos e voltar a voar”, afirma.
Uma história similar viveu o empresário Ricardo Galvão. “Já senti muita vergonha de expor os meus sentimentos em relação ao medo de voar porque o meu pensamento era: poxa, é uma coisa tão ridícula. Eu, um empresário, tudo mais… Como as pessoas vão me julgar? Como um fraco. Tinha vergonha (da aerofobia) , não só em relação aos outros mas comigo mesmo também, eu ficava muito frustrado”, conta Ricardo. Ele também buscou auxílio psicológico e comemora os resultados. “Cheguei à conclusão de que você tem de enfrentar o medo. Primeiramente reconhecê-lo. E quando reconhece a si mesmo já é um passo para a cura”, diz. Na opinião dele, não se levar muito a sério e dar risada de si mesmo são outra etapa para a cura. E o rivotravel assina embaixo: sempre busco dar um toque de leveza e diversão aos meus textos. O terceiro passo, para Ricardo, é se enfrentar, buscar a causa do medo. O empresário ainda sente um pouco de receio quando voa ( “quanto passo por uma turbulência maior”), mas ele adota algumas técnicas, como ler livros, ouvir música e pensar nas filhas. “Não sou de beber, mas tomo um vinhozinho, que dá uma relaxada. Assisto a filmes, e quando vejo a viagem acabou”, revela.
Como podemos ver, amenizar os efeitos ou mesmo superar o quadro de aerofobia é possível para os panicados. Os homens podem lidar de forma mais serena com seus próprios medos, bem como suas dificuldades de ordem afetivo-emocional acolhendo suas vulnerabilidades, afirma o psicoterapeuta Ricardo Wainer. “O paradoxo desta atitude é que, para validar e buscar melhores maneiras de lidar com as vulnerabilidades, o ser humano necessita de coragem, pois se defrontar com nossas limitações e carências é tarefa bastante árdua”, afirma. Para Wainer, todos sentem igualmente seus medos. A diferença fundamental é a capacidade de buscar ajuda para superá-los. ”Apesar de todos os avanços já conquistados no mundo atual no quesito da expressão emocional, ainda é nítida a diferença na ‘permissão’ de expressar vulnerabilidades entre homens e mulheres”, compara.
A experiência em consultório leva Solange a fazer algumas considerações interessantes em relação à aerofobia entre os homens e como eles se relacionam mal com a questão (o tal “medo que os homens têm de ter medo” do título da matéria). “Na verdade, os pacientes chegam relatando coisas do tipo ‘não sei o que está acontecendo comigo, me sinto envergonhado de estar com medo de voar’. Ou então: ‘Tentei vencer sozinho, mas não consegui, me sinto um fracassado’. Ou ainda ‘Estou aqui por que minha esposa me deu um ultimato, ela quer ir para o exterior e não sei o que fazer’ e por aí segue”. Uma questão importante que Solange ressalta é que, quando se sentem acolhidos na terapia, eles conseguem falar de todos os sentimentos e do que realmente temem. E nesse ponto, prossegue, as angústias em relação aos voos são as mesmas relatadas pelas mulheres, como medo de altura, medo de turbulência, claustrofobia ou medo de morrer em acidente aéreo.
O nível de embaraço com o assunto varia de pessoa para pessoa. Para alguns panicados, tratar abertamente do tema é um pouco mais tranquilo. O representante comercial Menotti Silva Filho, por exemplo, nunca sentiu pudor ou vergonha em relação ao próprio pânico de voar. Alguns amigos fazem brincadeiras com o assunto, mas ele diz que sempre levou numa boa. A coisa muda na iminência ou durante a viagem aérea. “No aeroporto ou no avião eu sempre tento não demonstrar (que tem aerofobia), porque ali sim eu tenho certeza que sentiria vergonha se alguém visse que estou com medo, tipo ‘olha o cara, que bundão, com medo’, nessas horas tenho vergonha, se alguém me olha no avião e eu estou segurando a poltrona ou algo assim”, explica Menotti.
Quem também sofre com as pressões internas e da sociedade para lidar com a aerofobia é o analista financeiro Fábio Abreu, que tem certa vergonha de tratar o tema abertamente. Os poucos amigos que souberam, conta, fizeram piadas ( “foi assunto de vários almoços no trabalho. Eu ficava sem graça, mas ria e respondia que era melhor ter medo de avião que perder pro Vasco”). Em rodas de conversas com amigos ou estranhos, ele conta que, quando surge o assunto (viajar de avião), sempre há alguém que diz: “tenho pavor”. E ele sempre rebate dizendo “não precisa ter medo, é o meio de transporte mais seguro do mundo, é super estável, tranquilo, igual ônibus”. Mas, por dentro, sente um frio na espinha só de pensar. “Com meu marido foi igual. Antes da primeira viagem juntos, ele disse que tinha um certo desconforto e eu falava pra não se preocupar, que era só dormir”, afirma. Resultado? O marido do analista dormiu profundamente e Fábio ficou tremendo, suando e fazendo cara de paisagem quando ele acordava.
Na entrevista com Fábio Abreu, uma frase me chamou a atenção. Foi quando fiz a pergunta: “Caso sinta ou já tenha sentido vergonha do seu medo, a que você atribui isso?”. A resposta: “Sei lá. Não é muito normal um brutamontes barbudo e todo tatuado sentir medo de avião, né?”. Assim como Fábio, sou barbudo e estou longe de ser pequenino (as tatuagens só tenho de photoshop — lembram da foto para esta matéria no começo do site?), mas acho que é possível, sim, sentir medo e lidar bem com isso. Macharada, vamos afrouxar o cinto de segurança que nos prende à cadeira da masculinidade tóxica e dizer: sou panicado assumido. E lido com o assunto da melhor forma que posso.
Mais uma vez os agradecimentos especiais vão para o fotógrafo André Souza (para ver os incríveis trabalhos do artista basta dar uma olhada aqui), que, a meu ver, conseguiu traduzir em imagens a ideia dessa matéria, ou seja, abordar as dificuldades que os homens têm de lidar com seus próprios medos — e, em última análise, com suas próprias existências. E nessa segunda parte desse texto os agradecimentos vão também para o modelo, marido e editor do rivotravel, Rafael Silva.
All you need is love.