Morre Danuza Leão, uma mulher polêmica que escrevia sobre viagens como ninguém
Que a escritora Danuza Leão morreu na semana passada a essa altura todo mundo já sabe, pois o noticiário nacional explorou à exaustão o fim da vida da jornalista. Sobretudo o “cancelamento” que ela sofreu nos últimos anos por conta de frases bem problemáticas, super elitistas e machistas. Mas não vou entrar nessa seara pois o rivotravel é sobre viagens, e isso ela fazia como ninguém. Por muitas décadas, rodou o mundo. E deixou tudo bem registrado em suas colunas publicadas em diversos veículos, como a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, além dos livros que lançou. Todos eles são recheados de relatos sobre as cidades que visitou. Mas dois deles são especiais nesse âmbito: “Fazendo as malas” e “De malas prontas”, o primeiro de 2008 e o segundo do ano seguinte, ambos editados pela Companhia das Letras. Para mim são clássicos da literatura do ramo.
Mas antes de entrar em detalhes, é preciso dizer um pouco quem foi Danuza Leão (muito mais do que irmã da cantora Nara Leão, como alguns gostam de reduzi-la). Eu inclusive tive o privilégio de entrevistá-la, me contendo todo para ser profissional, e não tiete, pois uma jornalista fina e elegante como ela certamente desaprovaria tal atitude (conto mais abaixo sobre essa entrevista).
Uma viagem pela vida de Danuza
Danuza Leão nasceu em Itaguaçu, no Espírito Santo, em 1933. Aos dez anos de idade, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Muito cedo, bem no começo dos anos 1950, começou a “modelar”, ainda adolescente E foi logo para Paris, “ainda uma menina”, diriam. É tida como a primeira modelo brasileira a ganhar fama internacional. Por lá ficou um tempo. Voltou, se casou algumas vezes, entre elas com o poderoso jornalista Samuel Wainer, fundador do extinto jornal Última Hora. Foi secretária, dona de butique, de restaurante, manequim, relações públicas da TAP Air Portugal, jurada de televisão e, como ela mesmo disse, foi “mais ou menos atriz. Umas invenções do Glauber”. O Glauber no caso era o Rocha, que escalou Danuza em um papel sem falas em “Terra em Transe”, talvez seu filme mais famoso. Ela também foi, como gostava de falar, diretora de nightclubs (Régine’s e Hippopotamus), duas casas badaladíssimas entre a alta sociedade carioca e os visitantes famosos estrangeiros, em plena Ditadura Militar no Brasil.
Ou seja: a mulher tinha know-how suficiente para escrever sobre viagens, não é mesmo? Voltando aos tais dois livros específicos, aqui já citados, ela reservou cada um deles para contar sobre quatro cidades. “Fazendo as malas” é sobre Sevilha, Lisboa, Paris e Roma. Já em “De malas prontas”, a autora flana por São Paulo, Buenos Aires, Berlim e Londres.
Lógico que a maior parte dos restaurantes, bares, hotéis e lojas listados são com preços proibitivos para a maioria das brasileiras e brasileiros. Mas Danuza estava simplificando a vida nas últimas décadas. Points da moda? Ela criticava: a tradição sempre falou mais alto. Lugares badalados para se hospedar? Pois ela sempre ia no mesmo hotelzinho sem muita bajulação em Paris, o Welcome (um dia ainda quero ficar lá). Butiques de grife a escandalizavam — é divertido ler os comentários que ela faz das vitrines, cada vez mais apelativas e cafonas. Mas, obviamente, os dois livros são recheados de dicas e detalhes de lugares bem chiques. Nunca botarei os pés em um deles, é claro, mas é gostoso de ler, e o estilo danuziano faz toda a diferença.
Ela odiava hospedar gente em casa, no Rio, ou ser hóspede de alguém. “Adoro um hotel, nem que seja meia-estrela, para não ter de dar bom-dia, conversar quando quero ficar calada, falar sobre o que fiz na véspera, eventualmente ser induzida a algum programa à tarde”, escreveu. Pode soar arrogante (principalmente a parte do “dar bom-dia”), mas acho que o ponto principal é: em hotéis, somos anônimos e fazemos nossas próprias programações.
Viajar, para ela, era uma das melhores coisas da vida (e quem sou eu para negar?). Mas ela faz uma ressalva: há os momentos de felicidade absoluta e os de tortura total. Ela dizia preferir viajar em pleno verão ou no auge do inverno. O motivo? A mala. “Não sei se é carma, mas a chamada ‘demi-saison’ para mim é trágica. Como não dá para saber se vai fazer frio ou calor, levo roupa para todas as estações”. Sábia.
as viagens de danuza leão
Em Sevilha, ela relata com muitos detalhes a famosa Feria, quando a cidade se colore e fica festiva, com muita dança típica, comida e bebida, é claro. Sobre Sevilha, ela escreveu: “o antigo bairro judeu é uma confusão de ruelas e pátios, um verdadeiro labirinto de casinhas brancas enfeitadas de azulejos, com quintais e pequenos jardins. Foi nesse bairro que viveu Fígaro, o barbeiro de Sevilha, e é lá que mora grande parte da nobreza sevilhana”. Deu vontade de conhecer. E claro que Danuza foi a uma tourada (eu jamais irei em uma, tenho horror). “A Plaza de Toros de la Real Maestranza é das maiores e mais imponentes do país. Em torno, dezenas de bares onde os espanhóis bebem, discutindo cada touro que vai ser toureado, a filiação, a “ganadería” de origem, e o toureiro; são os aficcionados, que parecem estar decidindo os destinos do mundo, sempre nervosos e fumando enormes charutos”.
Pela capital portuguesa, Danuza também caía de amores. “Lisboa é uma das cidades mais amáveis que existem. O clima é ameno, o tráfego flui com tranquilidade, as pessoas falam baixo e são as mais educadas e gentis que se podem encontrar. É ‘minha senhora’ pra cá, ‘minha senhora’ pra lá, um regalo aos ouvidos”. Para ela, era uma delícia sentir a calma da cidade, seus silêncios, ver os bairros onde as roupas ainda são estendidas nas sacadas para secar. É obrigatório, continua, a visita ao Castelo de São Jorge para se extasiar com a luz da cidade (“pois mais linda não há, em qualquer estação do ano”). Ela só lamenta a transformação de parte do bairro antigo de Alfama, que perdeu um pouco de sua beleza com o fim da maioria dos azulejos que revestiam as fachadas das casas. E uma última dica: passe pela rua das Portas de Santo Antão e procure um botequim mínimo, onde nem mesas existem, só um balcão. “Peça uma ginjinha, aguardente feita de uma fruta chamada ginja, e vá beber na rua”.
Paris é uma festa e uma das favoritas da escritora. “Como não gosto de sair, adoro Paris, porque lá me sinto totalmente em casa, e sem nenhuma obrigação de ir ver shows, exposições, museus etc”, contou ela, que morou na cidade quando tinha 17 anos (quando foi modelar e ficou dois anos na cidade luz) e depois dos 30 aos 35 anos. Ela relata que certos lugares da capital francesa não mudam, como o Café de Flore e que está exatamente igual há várias e várias décadas: o toldo, a varanda, as mesas, a roupa dos garçons, o menu. O mesmo acontece na Brasserie Lipp, que fica logo em frente. Ela questiona: por qual motivo alguns restaurantes têm a mania de ficar sempre renovando o cardápio? Boa pergunta. “Paris dá a sensação de que as coisas são permanentes, e essa é uma boa sensação”. Claro que a capixaba passeia pelos endereços mais elegantes da cidade, como a avenue Montaigne, lar de diversas “maisons” de alta costura. Para um “luxo acessível”, ela recomenda uma ida ao Museu Baccarat, onde é possível apreciar todas as preciosidades criadas pela famosa fábrica de cristal. Está com euros sobrando? Que tal um almoço no Cristal Room Baccarat, usando os objetos da grife? Para os amantes de vinho, uma dica preciosa: o Le Baron Rouge, na Bastille. “A hora boa é onze, meio-dia. Lá dentro, não mais do que três mesas”. A bebida vai sendo servida diretamente do tonel exposto no diminuto salão. Quem quiser petiscar algo ela recomenda o fois gras (amo, mas parei de comer, pois é muita crueldade com os gansos) ou um prato de cochonneries, composto por vários tipos de salsichas. Mais francês, impossível, garante.
De lá, para Roma. Divertida, trágica, arcaica, divina, define a viajante profissional. E eu assino embaixo. Da última vez que esteve por lá (pelo menos a última antes de escrever o livro), ela diz ter encontrado uma cidade tranquila (apesar de cheia de turistas), bem diferente da efervescência que conhecia décadas atrás. E logo no começo do capítulo ela já avisa aos leitores: não vai falar do Vaticano, da Fontana di Trevi, do Colosseu e do Panteon. Esses estão iguais (ainda bem!). Quem teve a sorte de comprar um apartamento em um dos velhos palazzi não sai de lá por nada neste mundo, relata. “E quem tinha uma mansarda do lado esquerdo de quem desce a escadaria (da Piazza di Spagna) era Sophia Loren — nada mau como endereço. E a escadaria, como em toda primavera, está deslumbrante, coberta de vasos enormes de buganvílias, misturados com os vendedores de bolsas fake espalhadas pelo chão. Mas as casas, que eram em terracota, começam a ser pintadas de outras cores. Roma está mudando aos poucos, porém continua maravilhosa”. Ela prossegue: o único lugar alegre realmente de noite é Trastevere (bairro que amo). Ela diz que apesar de se comer muito mal por lá (e eu concordo), as trattorias estão sempre cheias e envoltas em uma aura divertida. “Roma é cultura pura, é a ‘nascita del’Ocidente’. Caminhe, veja, respire o Império Romano, os templos, as termas, os jardins com seus altos ciprestes. Roma é como uma típica ‘mamma’ italiana, que abraça a todos que lá vivem e seus visitante”.
Danuza começa seu “De malas prontas” pela capital paulistana. “Os cariocas voltam de São Paulo deslumbrados, dizendo: ‘é outro país’. Pois estão enganados: não é outro país, são vários outros países, com diversas culturas, e quem demorar muito tempo para ir novamente à cidade vai levar um susto”, escreve. Ela conta sobre o dia (ou melhor, a noite) em que decidiu sair para dançar. As festas paulistanas começam às duas da manhã, algumas às quatro. E quando resolveu passear pelos Jardins, disse que se sentiu na Avenue Montaigne, em Paris. No pior sentido da coisa: tudo totalmente inútil. Somado a isso, as moças que passavam por ela, todas de cabelo super liso e salto alto nos pés. Deixaram Danuza tonta. E com cabeça nas nuvens ela estava quando foi atravessar a rua: levou um puxão da amiga. “O sinal está fechado (para pedestres)”. Ela prossegue, elencando as tribos da megalópole: “tem a enorme comunidade gay, com todas as subdivisões possíveis; as drags; as peruas discretas; as peruas que aparecem em Caras…” e por aí vai.
Danuza também amava a capital argentina, talvez por ser, como dizem, uma mistura de Madri com Paris. “As mansões de Buenos Aires foram projetadas por arquitetos franceses, os jardins e o parque de Palermo desenhados pelo mesmo paisagista que fez o Bois de Boulogne. O La Biela é o café mais charmoso da cidade, na opinião especializadíssima da jornalista. E com um espaço reservado para fumantes (pelo menos quando o livro foi publicado). Fica aberto das 7h às 3h (praticamente 24h). Lá se lê jornal, se come, se bebe, se toma café, chá, e é frequentado por todos e todas, dos muito moços aos muito velhos. Fica bem perto do Hotel Alvear, “um dos mais lindos que já vi, o melhor da América do Sul, e que guardou todo o estilo dos tempos em que a Argentina era riquíssima. Seus porteiros usam cartola, e os garçons, fraque; um luxo”. Os elogios, aliás, também vão para os portenhos (como são chamados os que lá nascem). Segundo ela, os homens são de uma elegância de cair o queixo, e mesmo as pessoas mais modestas se vestem de maneira correta, sempre de gravata, blazer, cachecol e sobretudo, a depender da temperatura (nesse quesito talvez o relato deve estar um tanto quanto ultrapassado, pois dizem que a crise financeira na Argentina está fortíssima e anda abatendo os argentinos).
Sobre a Alemanha, Danuza revelou ter pouca intimidade com o país, sabendo só o básico mesmo. Mas que foi atraída a Berlim após ouvir tantos relatos positivos: como a cidade era incrível, moderna, avançada, cosmopolita, que é lá que as coisas acontecem, lá que a vida noturna é mais fantástica, que em nenhum outro lugar do mundo há tanta liberdade. Por lá, foi no Zur Letzten Instanz, onde só o copo de chope já foi suficiente para causar espanto. Escolheu, claro, um prato típico, e quase caiu da cadeira quando ele chegou à mesa: um enorme pé de porco (ou joelho, não soube dizer ao certo) que mais parecia uma pata de cavalo, acompanhado por seis enormes bolinhos de batatas que eram iguais a laranjas pelo tamanho — e ainda um estranho patê que, depois de perguntar a um funcionário, descobriu ser gordura de porco misturada a salsinha picada, para esquentar o corpo no inverno. “A gastronomia alemã é muito, muito curiosa”, definiu. Mas nem tudo foram sustos. Passear por Berlim foi delicioso para Danuza. A cidade é verde. São dezenas, quem sabe centenas, de bosques, uns pequenos, outros enormes. “Fomos, claro, ver a estátua do anjo dourado — a SIegessäule — eternizada no filme “Asas do desejo”, de Wim Wenders. Danuza também dedica parte do capítulo para a “ilha dos museus” — que, como o nome já diz, é um grande pedaço no meio do rio onde estão diversos museus. “No Pergamon-Museum há esculturas gregas e romanas, e 6 mil anos de história, arte e cultura da Ásia, e mais o museu de arte islâmica. Ele é principalmente famoso por causa do Altar de Pérgamo e também do Portão de Ishtar, um dos portões da Babilônia de Nabucodonosor”, descreve. Bem, o Pergamon é de fato incrível, mas não dá para visitá-lo sem pensar que todas aquelas obras deveriam estar em seus países de origem e que tudo não passa de uma grande pilhagem colonial em países da África, Ásia, Oceania e Américas.
“Em Londres, tudo é diferente, a elegância é absolutamente discreta, você pode comprar uma coisa caríssima, mas ninguém percebe, só você, e essa coisa de muita grife, de mulheres se prestarem a ficar numa fila durante um ano para poder ter uma bolsa, é ridícula, cafona”. Assim começa Danuza o capítulo sobre a maior cidade da Inglaterra. E lá ela fugiu, como sempre, dos pontos turísticos. Decidiu dedicar seu olhar jornalístico para a elegância, sim, mas a dos homens. Começou indo visitar a loja do, segundo ela, melhor alfaiate do mundo, Henry Poole. Loja, não. Lojinha. Tem apenas seis metros de largura e desde 1806 pertence à mesma família. O terno mais barato custa 2,5 mil libras (16 mil reais) e o mais caro, de vicunha, 12 mil (77 mil reais). Uma pechincha (só que não). “Os ternos Henry Poole não saem de moda, porque nunca entram na moda. Afinal, um Poole é um Poole”. De lá, a brasileira partiu em direção à “melhor loja de camisas masculinas do mundo”, a Turnbull & Asset. “Cashmeres em todos os tons e modelos, e você pode encomendar o modelo que quiser, da cor que quiser. E foulards, e abotoaduras, e gravatas, e meias, e barbatanas de todos os materiais, inclusive ouro”. Um luxo. Discreto, é claro. Detalhe: as meias de cashmere custavam 80 libras, ou 510 reais. Ali do lado, na mesma rua (“uma rua mínima”) chamada Jermyn Street, fica a Floris, onde vendem água de colônia, sabonetes, sachês para perfumar gavetas e tudo mais que possa estar ligado aos cheiros. Entrar na loja é como ser catapultado para épocas antigas, ou a um desses filmes sobre alquimia. A Floris é muito chique, é claro.
Meu momento com Danuza (e outro quase)
Eu já li esses dois livros de Danuza mais de dez vezes, sem exagero. E lerei ainda outras tantas vezes. Eu realmente admiro muito a escrita da capixaba. Em 2011, quando eu era repórter do caderno de cultura do jornal CORREIO, aqui de Salvador, peguei uma pauta que quase me fez surtar de felicidade: entrevistar Danuza. Ela estava lançando naquele ano o livro “É tudo tão simples”. Fiquei nervoso. A entrevista seria no dia de meu aniversário de 30 anos, ela ligaria cedinho para meu ramal na redação. Claro que me atrasei todo e cheguei minutos antes do combinado. Esbaforido ainda, fiquei encarando o telefone que, pontualmente, tocou. “Alô, Salvatore? Aqui é Danuza”, disse. Ganhei meu presente de três décadas de idade. A conversa foi um incrível bate-papo sobre diversos temas. Só me faltou uma xícara de chá (inglês, é claro). Lembro que me dediquei tanto ao texto que ele até foi elogiado pelo secretário de redação do jornal.
Seis anos depois, eis que lanço o rivotravel. E o site ainda era um bebê de três meses quando resolvi fazer uma pauta sobre etiqueta em viagens (que você pode ler aqui). Claro que, assim que a ideia do texto me veio à mente, pensei em entrevistar Danuza, uma das mestras no assunto no país, autora do clássico “Na sala com Danuza”. Mandei e-mail para ela, que prontamente me respondeu, topando o convite. Fiz todo o trabalho de um repórter: mil pesquisas e uma lista de perguntas. Ela disse que me ligaria em um determinado dia e horário. O que eu não fiz? Tirar o celular do modo silencioso. Resultado: estranhando a demora da pontualíssima entrevistada, fui checar o aparelho e fiquei petrificado quando vi, no visor, a ligação perdida com DDD 21. Quis gritar, quis morrer. Acalmei meus próprios ânimos e cometi uma pequena indelicadeza: liguei de volta. Ela não me atendeu. Na mesma hora me lembrei de um dos seus livros (ou teria sido entrevista?), no qual ela disse nunca atender o telefone fixo — coisa que hoje em dia todo mundo faz, pelo menos quem ainda tem o aparelho em casa. Uma pena. Teria sido adorável conversar novamente com Danuza.
Como costuma dizer meu marido, infelizmente, não foi possível.