Entrevista com o panicado #03

Digam se essa história não dá um filme: adolescente que sempre sonhou com desastres de avião se apaixona por rock e logo descobre que os dois maiores ídolos morreram exatos vinte anos antes de seu nascimento em um acidente aéreo. A paixão e o horror caminham lado a lado por anos. Quando adulto, como em uma profecia, segue o mesmo caminho da música. Por medo, recusa convites para viagens e faz turnê por outro país de carro, para evitar os céus, percorrendo milhares e milhares de quilômetros pelas estradas. Para completar, há ainda um elemento sobrenatural na trama.  Acho que se chamássemos Zé do Caixão (o pai do terror nacional, falecido em fevereiro deste ano) teríamos uma bela obra.

Vamos começar “do começo”, para deixar tudo organizadinho e não perder nada dessa narrativa que mistura suspense, comédia e romance, com toque no além. Com vocês, o personagem principal dessa terceira edição do “entrevista com panicado”, o cantor e compositor baiano Rodrigo Chagas, 41 anos, conhecido nas últimas décadas no cenário do rock de Salvador como Rodrigo Sputter, o eterno vocalista da banda The Honkers.

 
Rodrigo Chagas (direita) abre o coração nessa entrevista frente a frente com Salvatore Carrozzo

Rodrigo Chagas (direita) abre o coração nessa entrevista frente a frente com Salvatore Carrozzo

 

Rodrigo nasceu em 1979, na capital baiana, e quando saiu do hospital foi logo para a casa onde mora até hoje, na região conhecida como Cidade Baixa, e com a qual ele sente uma forte conexão (essa informação será importante lá pra frente).  Os sonhos com avião caindo começaram cedo. Em 1993, na terrível fase da adolescência, descobriu o rock. E Rodrigo se amarrou muito no estilo rockabilly, gênero musical que surgiu no início dos anos 1950, nos EUA, bebendo na fonte da música country e no rhythm and blues (em uma definição bem básica, é claro).  Foi nessa década que alcançaram a fama nomes como Buddy Holly e Ritchie Valens,, além de um certo moço de prenome Elvis.

Mas vamos focar em Buddy e Ritchie. Rodrigo pirava na onda deles. Até que descobriu os filmes La Bamba, de 1987, (um clássico da Sessão da Tarde da Globo e em cartaz atualmente na Netflix) sobre Ritchie Valens; e A História de Buddy Holly, de 1978, (vencedor do Oscar de melhor trilha sonora, não disponível nos serviços de streaming), sobre a vida do músico que dá nome ao título. Em comum? Morreram no mesmo acidente aéreo, em 3 de fevereiro de 1959, junto ao também artista J.P “the Big Bopper” Richardson — é o tal acidente que relatei no início desse texto. A queda do avião de pequeno porte foi no estado americano de Iowa. Este dia seria definido posteriormente por Don McLean como “o dia em que a música morreu” na canção American Pie (não, não é criação de Madonna, ela apenas a regravou, em uma versão mais curta, em 2000).  Os pesadelos de um só tema (avião caindo!) do baiano passaram a ser cada vez mais recorrentes. “Tudo isso virou uma combinação explosiva, (se bem que) explosividade e avião não são coisas legais numa mesma frase”, brinca com o próprio medo o músico.

 
Memorial em homenagem aos músicos mortos em acidente de avião em 1959, em Iowa, nos EUA: o dia em que a música morreu

Memorial em homenagem aos músicos mortos em acidente de avião em 1959, em Iowa, nos EUA: o dia em que a música morreu

 

Pronto: juntando as imagens que aterrorizavam as noites do jovem Rodrigo com a história real dos artistas tão admirados e estava pronta a aerofobia do roqueiro baiano. Pra piorar, Ritchie Valens sempre sonhava que morria de acidente aéreo. Isso não impediu o então adolescente de adotar a estética rockbilliana no vestuário. A história dos músicos é um trauma até os dias de hoje “Coloquei aqui a trilha do filme (La Bamba) pra tocar enquanto escrevo e já bateu um frio na espinha”, conta o panicado, que respondeu às perguntas do rivotravel por e-mail.

 
Na juventude, Rodrigo se inspirou na estética dos ídolos para montar os looks. Sobreviver ao calor de Salvador com esse terno não deve ter sido fácil

Na juventude, Rodrigo se inspirou na estética dos ídolos para montar os looks. Sobreviver ao calor de Salvador com esse terno não deve ter sido fácil

 

E o elemento sobrenatural? Calma, conto agora. Lembram que falei da casa na qual Rodrigo sempre morou, de poucos dias de vida até hoje, e com a qual sente grande conexão? Pois bem, em 1998, ele namorou com uma garota cujo pai havia crescido na Cidade Baixa. “Um dia ele (o ex-sogro) veio me dar uma carona pra casa. Então, ao chegar na minha rua, ele começou a falar  ‘conheço sua rua, não se preocupe, nem precisa me dizer onde é…ah! essa casa da esquina era uma enfermaria. Essa outra aqui não existia, essa terceira era de um professor meu que morreu num acidente aéreo’”, relembra Rodrigo, que continuou simulando o diálogo:  

“Para tudo: o senhor disse que nessa casa morreu um professor seu em um acidente aéreo? ”. “Sim, morreu”, disse o pai da ex-namorada, apontando justamente para o lar de Rodrigo, cujos olhos, conta, lacrimejam ainda hoje ao contar a história. “Imaginem vocês como me senti, se eu já me cagava de medo de voar, depois desse dia, eu me sentia como Buddy Holly dentro de um avião prestes a cair”, diz o panicado, que seguindo os preceitos do bom jornalismo foi checar a informação com a mãe. E era tudo verdade: o antigo dono era um policial que morreu em um acidente aéreo. Ele era segurança de um político, o avião caiu e morreram todos a bordo. A viúva estava grávida e não quis mais viver na casa e a vendeu para o pai de Rodrigo.

Acham que o elemento sobrenatural acabou? Pois ele começou lá pelos idos de 1990, bem antes da tal revelação descrita no parágrafo anterior. “Quando eu tinha lá pra uns 11 ou 12 anos, estava em casa com minha mãe e meu primo. (Aqui em casa) tem um corredor que passa pelos quartos e termina na sala e nele há uma escada. Eu estava indo pro meu quarto, me borrando de medo, não sei por quê. De repente, vejo um vulto na escada, parado, fitando-me. Sai gritando e meu primo e minha mãe vieram me perguntar o que havia acontecido. Falei pra eles o que eu vi. Procuramos a casa inteira e nada, nem sinal de alguém, nem fez barulho na escada, nadica de nada”, conta. Alguns anos depois, veio a fase ídolos mortos do rockabillie e a descoberta da “maldição da casa”.  Se ele achava que morreria como Buddy Holly, depois disso tudo passou a ter certeza de que seria o próximo da lista.

 
Rodrigo em 2020 em frente à casa onde cresceu e que pertenceu, no passado, a um policial que morreu em acidente aéreo. Na direita, detalhe da escada onde viu um assustador vulto

Rodrigo em 2020 em frente à casa onde cresceu e que pertenceu, no passado, a um policial que morreu em acidente aéreo. Na direita, detalhe da escada onde viu um assustador vulto

 

Poxa, Zé do Caixão, era para você ter filmado isso…

Até o ano 2000, Rodrigo nunca tinha voado. Mas aí Morrissey (ex-vocalista do The Smiths ( “outro topetudo e de costeletas”, comenta o entrevistado) veio tocar no Brasil. O baiano conta que tinha de ir vê-lo de qualquer maneira, pois tratava-se de um dos seus cantores favoritos. “Fui ver o Morrissey. Pensei que nem lá chegaria (no Rio de Janeiro). Pois cheguei. Voei nem sei como. Acho que devem ter me tirado de lá (do avião) como se fosse uma pedra de gelo, toda dura”. Durante a estadia no Rio, ele lembra de ter sonhado com acidentes todas as noites. Ainda por cima, viu um episódio dos Simpsons que rolava uma pane louca em na fictícia cidade de Springfield e os aviões caiam. Na viagem de volta, o avião foi do Rio para São Paulo, depois para Porto Seguro e de lá para Salvador. “Se Deus existe (aliás, rezei que foi uma beleza, todo meu niilismo foi por água abaixo), bom, se Ele existe, aprontou uma comigo, pra testar meus nervos, na volta fiz logo três decolagens. Sadismo divino. O medo era tanto que cheguei a escrever uma canção sobre um cara que tá indo ver a namorada e o avião está caindo”. conta. A música é Between The Devil And The Deep Blue Sea (Entre o diabo e o profundo mar azul, não confundir com a obra homônima gravada por George Harrison). Na faixa, em inglês, nosso compositor em pânico faz o backing vocal.

 
 

Em 2005, a banda The Honkers (formada seis anos antes) saiu em turnê pelo Brasil e Argentina. De avião? Por supuesto, no, diriam os hermanitos do nosso país vizinho. Foram na versão roots rockeira, de carro mesmo, saindo de Salvador (que está bem longe da Argentina). “Um (veículo) Santana Quantum, creio que de 1992. O troço parecia uma lata de sardinha de tanta coisa e gente dentro dele”, relembra. Depois disso, ele já fez algumas viagens aéreas, todas péssimas (os voos): para o Chile, em 2018, e no último réveillon para Porto Alegre (RS). “Tem uma sensação meio estranha que sempre rola comigo. Nessa viagem que fiz para Porto Alegre, eu fiquei sentindo que ia morrer. Então alguns dias antes de viajar, fui ver uns amigos, andei pela Cidade Baixa, parecendo que ia morrer, que não voltaria para Salvador. Fiquei olhando o mundo como se fosse a última vez, os últimos dias, os últimos momentos vivos. Chegando em Porto Alegre, senti um alívio de estar vivo. Depois, poucos dias antes de voltar, tive a mesma sensação da ida. Parecia que estava vivendo meus últimos dias. E agora estou aqui, em casa”, afirma. 

 
Trem entre Talca e Constitución foi uma das melhores partes da viagem que Rodrigo fez em 2018 ao Chile. Também, pudera: trem não decola…

Trem entre Talca e Constitución foi uma das melhores partes da viagem que Rodrigo fez em 2018 ao Chile. Também, pudera: trem não decola…

 
 
Quinteto da The Honkers reunido em frente à casa de Rodrigo para início da jornada de carro rumo à Argentina: rock n’roll na veia, baby

Quinteto da The Honkers reunido em frente à casa de Rodrigo para início da jornada de carro rumo à Argentina: rock n’roll na veia, baby

 

Quando consegue voar, Rodrigo vira quase uma estátua. Muda. Ele diz ser um tagarela no dia a dia , mas quando voa, fica calado. Muito calado. “Deve mexer muito comigo para me deixar calado. É uma coisa muito chata e tensa, porque penso na morte o tempo inteiro que estou voando. E  antes e depois também, uma coisa terrível”, diz.  E se em alguns momentos ele consegue vencer o medo e embarcar, há outros nos quais ele trava totalmente. Em 2014, uma ex-namorada foi com a mãe e a irmã para a Argentina, onde alugaram um apartamento. Ofereceram até passagem ida e volta para o cantor, que também não precisaria se preocupar com o aluguel. Ele disse: “não obrigado, vou ficar na Cidade Baixa mesmo”.

 
Um pavor em três atos: Rodrigo teso de medo durante viagem que fez ao Chile. Sorriso? Só se for amarelo

Um pavor em três atos: Rodrigo teso de medo durante viagem que fez ao Chile. Sorriso? Só se for amarelo

 

A mesma antiga namorada, certa vez, estava planejando uma viagem para a Índia. A ex-sogra ofereceu a passagem de ida e volta, hospedagem paga, tudo 0800, de modo que ela não fosse sozinha para Índia. Ela tinha medo que algo terrível acontecesse à filha (“infelizmente sabemos que ocorrem muitos (casos de) feminicídio e estupros por lá”, explica o músico). Não teve jeito. Nada fez com que Rodrigo encarasse o avião, nem pra Argentina, nem para a Índia — para este último destino seriam mais de 30h entre voos e conexões. “Acho que ia enfartar dentro do avião caso fosse”, ressalta. A mesma ex-namorada certa vez o convidou para ir para os EUA, com as despesas pagas, e ele não aceitou. Eu não disse, no começo desse texto, que a história de Rodrigo envolve romance? Só não falei que o amor era pela própria vida, que o medo seria maior que a paixão. Entendemos perfeitamente o panicado, não é mesmo?

Na semana antes de um voo, Rodrigo tem diversos pesadelos. “Um pouco antes da ida e da volta é um horror, não aproveito nada. Ultimamente tem me dado uma coisa estranha na hora que (o avião) decola, que é a pior hora pra mim, tipo uma tontura, uma vontade de desmaiar. Dizem que a pior hora (para um acidente) é a decolagem e a aterrissagem, mas quando (o comandante) fala que está em procedimento de aterrissar…ufa”. Para Rodrigo, que os profissionais que trabalham dentro de um avião são pessoas destemidas, “mais corajosa do que um soldado numa cidade sitiada e sem chances de sobreviver”, compara. Ele conta que, mesmo que oferecessem um alto salário (R$ 100 mil, chuta para o alto) ele não conseguiria exercer uma dessas funções. “Nunca entendi porque as pessoas sorriem nos voos. Tenho inveja do sorriso. Mas veja bem, sempre penso maluquices, e essa zorra nunca caiu. Vamos manter essa tradição, só que com menos morbidez”.

Escolhi essa última frase para encerrar essa entrevista pois acho que ela resume o objetivo do rivotravel (e o meu, para a vida e para os voos): caso não consiga dobrar um medo, me livrar de algo que me dá temor, que pelo menos seja algo um pouco mais leve. Um dia vou morrer, assim como a música morreu em 1959, mas até lá quero aproveitar essa viagem.