Em qual aeroporto de Paris vocês pousaram mesmo?
A campainha do apartamento tocou. Alexandre correu para o quarto, desligou a luz e se jogou na cama. Cássio foi atrás.
— Alê, é seu pai, você vai ficar aí?
— Diz que eu estou com dor de cabeça, por favor. Não consigo.
Cássio sabia que não tinha argumentos que conseguissem tirar o marido da posição fetal em que se encontrava. Saiu, fechou a porta e foi atender o sogro, que àquela altura já enterrava o dedo no botão.
—Oi, seu Getúlio, como vai?
— Cadê meu filho, disparou, estranhando a ausência do primogênito.
— Ele está dormindo, está com muita dor de cabeça. Acho que ficou gripado agora no voo de volta.
Getúlio, homem atarracado que parecia ter bem mais que os 60 anos registrados na identidade, não se movia.
— Entre, por favor. Vou pegar os casacos.
Enquanto Cássio ia buscar na lavanderia a sacola com as roupas de frio emprestadas para a viagem, o sogro avançou um metro e ali ficou.
— Aqui está. Eu ia mandar para a lavanderia, mas o senhor quis passar aqui hoje, então…
Getúlio pegou o volume das mãos de Cássio, a mesma sacola de loja chique que havia deixado na portaria do casal duas semanas antes, no dia seguinte ao casamento. Olhou o conteúdo e viu que estava tudo lá: uma echarpe, um sobretudo, um par de luvas, um gorro. Tudo para garantir que o filho não passasse frio. Igualmente gélido, fez uma observação.
— Está tudo dobrado do mesmo jeito que deixei.
— Está? Coisa do Alê….do Alexandre. Sabe como ele é, metódico.
Getúlio aproximou o nariz do tecido macio feito de vicunha.
— Estão com cheiro do amaciante que a moça usa para lavar as roupas lá em casa.
Cássio ficou desconcertado. Getúlio agora encarava o rapaz.
— O senhor não quer mesmo entrar? Minha mãe deixou uns doces aqui, mas é muito doce, não quer levar uns para Dona Fátima?
Getúlio cheirou de novo a sacola. Puxou a echarpe e enfiou a cara toda. Olhou para Cássio em silêncio. Disparou:
— Em qual aeroporto de Paris vocês pousaram mesmo?
Cássio sentiu as pernas ficando fracas, mas espichou a coluna.
— Aeroporto? Então, a gente tava tão cansado, o Alexandre meio grogue dos remédios, eu nem prestei atenção nisso, sabe? A gente só queria pegar um táxi e chegar logo no hotel.
— Pegaram táxi? Mas eu tinha dito pro meu filho que eu também já tinha pago o transfer. Estava tudo detalhado no roteiro que eu passei para ele.
— Pois é, mas na pressa de sair de casa a gente deixou o papel em cima da mesa de jantar.
— E como se viraram para saber o nome do hotel sem ele?
— Memória fotográfica a minha, decorei só de passar o olho.
— Mas não se lembra do nome do aeroporto…
— Pois é, engraçado, não é?
A vizinha do 81 abriu a porta, deu um alô esfuziante e apertou o botão do elevador, que ainda estava no andar. A porta logo se abriu. Desceu.
Getúlio permanecia imóvel.
— E que tal Paris?
— Linda. Linda. Sem palavras. Realmente não tenho vocabulário para descrever a cidade.
Getúlio espremeu os já pequenos olhos de coruja.
Silêncio.
— E a Catedral de Saint Paul?
— Sem palavras
Na mesma hora Cássio se lembrou que a catedral ficava em Londres.
Getúlio não perdeu tempo:
— A Catedral de Saint Paul fica em…
Cássio ousou cortar o sogro.
— Londres. É verdade.
Mais silêncio.
— Mas sabe que na rua de trás do hotel que a gente ficou tem uma ruazinha que sai em outra ruazinha que sai em uma igreja chamada Saint Paul? Me confundi.
— E era uma catedral?
— Não, era uma igreja. Inha. Igrejinha. Bem pequenininha. Nem está nos mapas turísticos.
— Curioso, eu já fiquei várias vezes nesse mesmo hotel com a Fátima e não me lembro de nenhuma igrejinha por perto. E olha que a gente conhece bem a região ali de…
Getúlio fez uma pausa e esperou que Cássio a completasse.
Cássio calado estava, calado ficou.
Getúlio deu um passo para trás e fincou pés no hall do elevador. Olhou de cima a baixo Cássio, que dava claros sinais de nervosismo. Subiu o olhar e fitou o rapaz, que já nem mais estava a beira de um ataque de nervos: já tinha sido empurrado no abismo do terror.
— Vocês não foram para Paris. Eu sabia que Alexandre ia fraquejar. Medo de avião. Veja se isso é coisa de homem. Covarde. Vocês… Quando ele estava com a Manuela ele não tinha disso.
Ao ouvir aquilo, o sangue de Cássio subiu mais alto que a torre Eiffel, que ele não viu nem de longe. “Vocês…”. Manuela”.
— Vocês o quê? Diga! Diga! E você, que quer compensar sua ausência na vida de seu filho pagando viagem cara? Sabendo que o Alê morre de medo de voar? Que não pode nem passar perto de um aeroporto que já fica nervoso? Que tem ataques de ansiedade, que aliás tem ataques de ansiedade desde a adolescência? Você é um escroto, que acha que vai comprar o carinho do filho. Vem aqui com seus olhinhos me interrogar? Pois saiba que a gente foi pro litoral, tivemos uma linda, uma linda lua de mel e seu filho foi muito feliz. Foi e será lindamente feliz, estupidamente feliz. Quem perde é você. Vá embora.
E bateu a porta.
Mas voltou a abri-la, encontrando o sogro ainda petrificado no mesmo lugar.
— Ah, e antes que eu me esqueça: va a la merde!