Do Acre à Itália: como o menino sumido me fez lembrar de Roma
Toda essa celeuma causada com o sumiço (e aparecimento nesta sexta-feira, dia 11) do tal menino do Acre — se você estava acompanhando o noticiário nos últimos meses sabe do que eu estou falando — só me deu ainda mais saudades de Roma. Explico um pouco: em março deste ano, um rapaz desapareceu de sua casa, em Rio Branco. Deixou em seu quarto um monte de anotações como se fosse um livro todo colado nas paredes (que foi lançado recentemente, inclusive). Mil hipóteses e várias teorias da conspiração surgiram. Um dado curioso é que no meio do quarto havia uma replica muito bem feita da famosa estátua que representa o teólogo, filósofo e escritor italiano Giordano Bruno (1548–1600). A original se encontra no meio da praça Campo de’ Fiori, em Roma. Bruno foi queimado vivo pela Inquisição bem ali, no meio da praça, por defender ideias anti-cristãs, como acreditar em um universo infinito e que a Terra não era o centro de tudo. Acabou na fogueira.
Mas a história aqui não é sobre o rapaz do Acre nem sobre Giordano Bruno, e sim sobre o Campo de’ Fiori, um dos pontos mais movimentados, em qualquer hora do dia ou da noite, da capital romana. A praça, nos moldes como é hoje, surgiu em meados do século XV, como parte do projeto papal de reestruturação da cidade (naquela época o Papa mandava em tudo). O nome, campo das flores, foi escolhido porque ali ficava um enorme descampado todo florido. Logo surgiram importantes edifícios que até hoje sobrevivem, como o Palazzo della Cancelleria e o Palazzo Farnese. Por esse motivo, a zona ficava no meio de um vai e vem de pessoas importantes, como conselheiros e cardeais (olha lá a igreja de novo). Por falar em igreja, essa é provavelmente a única praça da parte histórica da cidade que não possui um centro de culto católico.
Quando foi inaugurada, o Campo de’ Fiori se transformou em uma feira de cavalos, o que a tornava muito requisitada. Dai para a instalação de diversos restaurantes e hospedarias foi um pulo. Hoje, não há mais cavalos, é claro. Mas o comercio popular toma conta, nas manhãs e no início da tarde (de segunda a sábado), e é possível encontrar de tudo, sobretudo artigos de alimentação (peça para provar o que achar com cara de gostoso) e, claro, flores. Ali também está um dos melhores cinemas de Roma. Não que seja o maior ou o mais luxuoso, mas o Cine Farnese, pelo menos até uns anos atrás, mantinha a tradição de exibir filmes em língua original, com legendas em italiano. Um luxo só, considerando que a maioria esmagadora dos cinemas romanos (aliás, italianos!) exibe cópias dubladas (o horror, o horror). Eu adorava pegar uma sessão lá. E depois, andando poucos passos pela via dei Giubbonari, chegar a um restaurante bem pequeno que serve um bacalhau frito divino. Não tem erro, é só seguir o cheiro e a multidão de romanos que entope o local — e se tem pessoas locais comendo em algum lugar, então é sinal de que vale a pena dar uma parada.
Na minha viagem mais recente a Roma, eu e um amigo italiano acabamos caindo no Campo de’ Fiori. Famintos, fomos logo procurar um lugar para almoçar. Tudo lotado, em uma mistura alegre de turistas e locais. Andando pelo entorno (sempre aposte nos entornos, pois eles revelam surpresas), pegamos a via del Pellegrino: não andamos nem dez metros e já decidimos onde pousar. Osteria da Fortunata. Na vitrine, três verdadeiras mammas italianas faziam a massa fresquinha, fresquinha, para deleite de quem passava pela rua. Opa, é aqui mesmo que vamos ficar, pensamos. O restaurante estava abarrotado, a mesa ao lado da nossa era distante o espaço de dois dedos (juro!). Mas a massa estava deliciosa (pappardelle al ragu) e o vinho da casa era dos mais honestos. Saímos de lá revigorados, prontos para continuar explorando a cidade. Já estava quase anoitecendo, e os pubs do Campo de’ Fiori começavam a ficar cheios de gente jovem, todos para a hora do aperitivo (que em italiano significa não só comer uma coisinha rápida, “al volo”, como eles dizem, mas também tomar uns drinks).
Na área ao redor do Campo de’ Fiori também há uma série de passeios bacanas para fazer. Um deles é ir conhecer o Palazzo Farnese, sede da atual embaixada francesa na Itália. O prédio por fora já vale a pena. É um exemplo perfeito da arquitetura do renascimento. O nome vem da importante família Farnese, que também dava as cartas em Roma por volta de 1400. Com a morte do construtor que deu início às obras, quem assumiu a direção da coisa toda foi ninguém menos que Michelangelo (1475 — 1564). Na frente do palácio há uma fonte em mármore que originalmente ficava nas Termas de Caracalla (quando eu digo…em Roma tudo era reaproveitado — isso quando não era tudo destruído pelas invasões bárbaras, é claro). Dentro do Palazzo, é possível admirar afrescos, estátuas, pinturas e tapeçarias. A visita com tour em inglês acontece às quartas-feiras (mais informações aqui).
Atrás do Palazzo Farnese está a Via Giulia, também fruto dos trabalhos para remodelar Roma nos séculos XV e XVI. A ordem de abrir uma rua reta, de um quilômetro de extensão (algo inovador na época) veio do Papa Júlio II. A obra foi colocada a cargo do renomado arquiteto Bramante, que chegou a trabalhar na famosa Basílica de São Pedro, no Vaticano. Hoje, a via Giulia é um delicioso passeio, com seus inúmeros antiquários, além de igrejas e palácios renascentistas. Uma caminhada por lá, tomando um sorvete, é um puro dolce far niente, o “doce fazer nada”, a arte de aproveitar o momento tão apreciada pelos italianos.
Quem diria que o caso do rapaz sumido do Acre não teria repercussões no rivotravel, hein? Aqui, como em Roma, tudo se aproveita.