Como assim lockdown?
“Como assim lockdown?”, perguntou em inglês um confuso Bruno.
“Pois sim, meus senhores. Determinação do presidente. Por conta desse novo vírus, fomos informados que os hóspedes devem ser mantidos nos quartos. Deram inclusive a orientação de que se alguém quiser burlar a lei deveria ser acionada a polícia. Mas não creio que será para tanto, não é mesmo, senhores?”, respondeu o recepcionista do modesto hotel no centro histórico de Roma, que não via uma reforma desde a época imperial da cidade.
Bruno virou-se ao irmão e disse baixinho, em português: “Vamos, Paulinho, vamos para nosso quarto e lá a gente pensa o que faz”. Paulo, com vontade de pular na cama desde que pousaram na Cidade Eterna vindos do Rio de Janeiro, apenas balançou a cabeça de modo afirmativo.
O hotel era decadente, isso era um fato. Mas, além da excelente localização, outro ponto positivo chamou a atenção de Bruno, três anos mais velho que Paulo e financiador da viagem dos dois: o quarto era no térreo e, entre as fotos de pias com torneiras douradas descascando e camas com duvidosos cobertores fúcsia, estava lá: um aparentemente delicioso pátio interno privativo, com chão de mosaicos coloridos e sombreado por uma gigantesca árvore, além de um acanhado, porém honesto, pé de romã. Vista zero – o apartamento ficava em um nível abaixo da rua. Mas era bem charmoso, a julgar pelos comentários dos internautas do site de reservas.
Paulo, o mais interessado no móvel coberto pelo pano puído fúcsia, foi logo abrindo a porta e se jogando sobre o colchão de molas – que rangeram de modo bizarro – sem nem tirar a roupa do corpo. Dormiu em menos de um minuto.
No dia seguinte, o caçula acordou com o sol tímido do fim do inverno europeu esquentando levemente seu rosto. Sem nem mesmo levantar a cabeça, viu Bruno sentado em uma cadeira de ferro ao lado de uma mesinha do lado de fora. Em uma mão o celular; na outra, uma xícara com uma atraente fumacinha saindo e desaparecendo no ar. Na frente, apoiados na mesa, um bule, alguns croissants, queijo e uvas.
“Buongiorno, principesso!”, saudou o irmão, empolgado. “Quer as notícias boas ou ruins primeiro?”.
“As boas, por favor”, resmungou de forma quase inaudível Paulo, sentando-se e pegando o bule para se servir sem nem mesmo saber o conteúdo. O líquido marrom escuro deixou o rapaz confuso: chá forte ou café fraco? Depois de provar e descobrir que se tratava de um autêntico “chafé”, desejou o tradicional espresso italiano.
“Ok, as boas, então”, disse Bruno. “As uvas estão ótimas”.
Paulo encarou o cacho de uvas verdes, que de fato pareciam bem atraentes. Depois, subiu o olhar e fitou o irmão, que abriu um largo sorriso.
“E?’, perguntou Paulo.
“E agora vamos para as notícias ruins. O país de fato está em lockdown total, não é possível viajar para outras cidades, ou seja, adeus, Siena e Florença. Na verdade só podemos sair daqui para alguns poucos lugares, tipo farmácia, mercado, e mesmo assim é uma burocracia, tem de imprimir um documento que eu não entendi bem qual é, preencher em italiano, mostrar para a polícia. Por falar em polícia, quando fui lá no restaurante do hotel pegar nosso café da manhã, vi pelas janelas uns vinte policiais em menos de cinco minutos, te juro. Os monumentos e atrações turísticas estão fechados. Resumindo: é sair daqui e voltar pro Brasil. Liguei para a companhia aérea e eles têm um voo amanhã cedo. Sinto muito, Paulinho”, disse Bruno com voz pesarosa.
– Que é isso, Brunão. Eu que sinto muito. Você pagou toda essa viagem para mim.
– Queria te mostrar um pouco desse país que sou apaixonado. Os anos que vivi aqui em Roma na faculdade foram os melhores de minha vida, acho.
Uma pausa pairou sobre os dois. Paulo já atacava um dos croissants, de sabor surpreendentemente ótimo.
– Tive uma ideia, disse Bruno. Já volto.
E saiu correndo do terraço. Retornou minutos depois, com um grande papel nas mãos.
– Olha, esse é o mapa de Roma. Vou te mostrar tudo que você deveria conhecer se a gente pudesse sair, vamos “caminhando” daqui para a Fontana di Trevi, depois pro Panteão, depois Castel Sant`Angelo, depois Vaticano. Quer ir também nos museus Vaticanos? Olha, vale a pena, lá está a Capela Sistina, os dedos do Criador e da Criatura quase se encontrando, sabe? Vou te contar tudo! Bruno estava realmente animado.
Paulo deu de ombros, mas percebendo que sua resposta titubeante ao jogo proposto pelo irmão tinha sido recebida com uma expressão de certo pesar, esforçou-se para manter um mínimo ânimo na fala.
– Ok, gostei. Por onde começamos?
E assim eles foram. O “giro imaginário" pela cidade começou às 9h com as uvas ótimas e o café péssimo e terminou quase 17h, com um almoço tardio pedido no próprio hotel — um Bucatini Amatriciana com uma garrafa de Chianti para acompanhar e Tiramisu de sobremesa. Bruno contou sobre a Roma dos sete reis, as épocas republicana e imperial, a Roma Paleocristã, o surgimento do Papado, a Idade Média, o Renascimento e a fase Barroca. As minuciosas descrições eram ilustradas por imagens pesquisadas no Google e mostradas no visor do celular. Contou de ruas, ruelas, monumentos enormes e modestos, as cúpulas, o entardecer. Contou da esquina de onde, completamente bêbado, havia ligado certa noite para o irmão no Brasil para dizer que o amava e obtivera como resposta um — se muito — protocolar “Ok”.
“Bastardo, falariam os romanos”, disse Bruno. Aquilo me deixou bem triste.
Paulo deu um ligeiro sorriso. “Eu te amo, urso. Você sabe disso”.
O silêncio novamente fincou pé naquele pátio, mas dessa vez não havia desconforto. O sol já tinha dado “ciao” e a temperatura externa beirava o insuportável. Paulo tirou o guardanapo de pano do colo, colocou sobre a mesa e fez menção de levantar-se.
– Espere. Fique mais um pouco. Eu tava aqui viajando total. Estamos bem abaixo do nível da rua, que passa lá em cima, agora deserta por conta do lockdown, mas que geralmente é viva, pulsante. E essa rua, cara, essa rua não tá nem aí para o que está abaixo dela. Que é a Roma Antiga. A Roma Antiga está enterrada, é real! A cidade foi crescendo para cima, é assim com todas as cidades. E essa rua que está lá em cima, essa rua, daqui a dois mil anos, vai estar bem enterradinha, esquecida. E será pelas ruas mais altas que vão andar nossos descendentes, se eles vierem pra cá um dia, é claro, E…”
— Eu acho que não quero ter filhos, urso. Marília quer muito casar e ter filhos. E eu quero Marília. E só.
Silêncio pesado no ar. Bruno e Marília eram grudados, e quem visse de fora poderia jurar ser um casal a três ou um escancarado caso de traição em família.
Pela primeira vez nas últimas oito horas, Bruno ficou calado e deslizou ligeiramente pela cadeira, o metal frio incomodando o pulso para fora do pulôver.
– Cara, você precisa resolver isso.
– Eu sei. Só não sei como. O que você faria em meu lugar?
– Paulo, não posso te dizer isso. Você tem de tomar essa decisão você mesmo. Porque qualquer que seja a decisão, só você vai ter de lidar com ela. Não queira se arrepender por algo que te foi sugerido, que te foi aconselhado. Vai por mim.
Novamente o silêncio sepulcral.
— Só acho uma coisa: não demore muito tempo para se decidir. A vida passa rápido, e uma coisa vai sucedendo a outra e quando vemos já somos enterrados, não enterrados de morrer e ir pro caixão, mas enterrados pela vida que foi passando e a gente se perdeu em algum lugar no meio do caminho e já não sabe mais voltar. Ter filhos não é o fim do mundo. Não ter filhos também não é. As pessoas continuarão a nascer e a morrer e as cidades vão continuar subindo. E vamos logo entrar no quarto que o frio tá de doer os ossos e esse vírus maldito não nos quer aqui nessa cidade. Mas pelo menos você conheceu bastante dela hoje, não? Espero que tenha gostado do passeio. E, lobinho, eu te amo, bastardo.