Não, meu amor. Não vai cair, não
A leitura de Mariana foi interrompida pelo tapinha de João em seu antebraço esquerdo. Ela estava na segunda fileira, na poltrona do meio do avião que a levaria de São Paulo a Vitória, onde participaria de uma defesa de doutorado em Química.
— Tia, tô com medo.
Até então a professora não tinha dado conta que um comissário havia displicentemente colocado o pequeno passageiro ao seu lado. Estava compenetrada no livro. Óculos escuros tentavam minimizar a noite mal dormida. No fone de ouvido, Radiohead nas alturas. Estava presa em seu mundo, voando alto.
Frente ao sincero e diminuto pedido de ajuda, tirou os auriculares dos ouvidos e tentou entender o que estava acontecendo.
— Olá, tudo bem? Como você se chama? Eu sou Mariana.
— Oi, eu sou o João, tenho quase 7 anos e estou indo ver meu pai. Esse avião vai cair?
A pesquisadora ficou enternecida com a ingenuidade e franqueza do garoto. Ela não tinha medo de voar. Era daquelas que dormiam tão logo o avião decolava e nem a mais temível turbulência era capaz de acordar.
— Não, meu amor. Não vai cair, não. Falei com o piloto mais cedo e ele garantiu que não vai cair.
Mariana então notou que a criança estava sem o cinto de segurança e que a mochilinha colorida foi acomodada, provavelmente pela tripulação, embaixo da poltrona à frente de João.
— Deixa eu colocar seu cinto, pra você ficar bem seguro —, disse Mariana, envolvendo o vizinho de assento com os braços. Sem pedir autorização, pegou a mochila e viu o que tinha lá dentro. Biscoitos, um suco em caixinha, uma toalhinha, lápis de cera e um livro para colorir. Achou que esse último seria uma boa distração para ele e um alívio para ela.
João botou o caderno no colo e começou a pintar, sem respeitar muito as linhas dos desenhos. Mariana recolocou os fones, mas agora a cabeça estava em outro lugar.
— Mamãe, vou pular.
— Pode pular, meu filho. Estou aqui embaixo da árvore para te pegar.
Ronaldo deveria ter mais ou menos a idade de João quando se jogou do maciço galho do pé de manga em direção aos braços de Mariana. Era destemido, não tinha medo de nada. Olhava a agulha quando tinha de fazer exame de sangue. Não corria de latidos. Nunca teve pavor de monstros imaginários embaixo da cama.
Por um segundo, Ronaldo chegou a pousar na segurança das mãos da mãe, mas logo tombou pro lado direito e caiu no chão, que estava meio lamacento por conta da chuva da noite anterior. Ronaldo ria enquanto o filete vermelho descia pela testa. Ria como se estivesse vendo um desenho animado da Pixar. Sete pontos e uma cicatriz, orgulhosamente exibida na escola. Um tubarão, dizia, para ooohhhs e aaaaahhss dos amigos.
Era um garoto normal, mas diferente, diriam uns. Brincava de bola na rua e gritava e suava e comemorava cada gol, mesmo dos adversários, que recebiam dele os parabéns pelo feito. Mas às vezes passava meses no quarto, lendo. Depois se lembrava dos amigos do bairro e saia de sua toca. Não queria ajuda com os estudos. Não queria que arrumassem seu armário, admiravelmente impecável.
Outro cutucão no antebraço. Mariana tirou o fone e guardou na caixinha. Prenúncio que o voo, apesar da curta distância entre as cidades, seria longo.
— Meu lápis caiu no chão —. O avião taxiava pela pista de Congonhas.
— Ah, tudo bem, deixa que eu pego —, disse, entregando o objeto em seguida.
— Você parece minha avó. Ela também é velha, tá perto de morrer.
Mariana não pôde evitar de sentir um leve arranhão na autoimagem, apesar das décadas de terapia e da pouca idade da voz crítica masculina em questão. Ensaiou dizer que não era muito agradável dizer aquilo às mulheres, mas se cansou antes mesmo de pensar em escolher as palavras certas para uma explicação mirim de etiqueta e feminismo.
O garoto se assustou com um barulho que veio do fundo do avião. Mariana achou que a única opção era conversar com a criança.
— Olha, avião faz uns barulhos estranhos mesmo, mas é tudo normal, tá? Daqui a pouco você vai ouvir um barulhão bem grandão, VRUUUUUUU, e vai parecer que tem alguém te empurrando pra trás. Mas é normal isso, tá?
João sorriu, mas seu nervosismo era evidente.
A decolagem veio. Para distrair o menino, Mariana fazia perguntas sem pausas após cada resposta. De onde era, como era a mãe, como era o pai, o que mais gostava de fazer. Descobriu que ele era carioca, mas morava com a mãe, uma “fazedora” de joias, em São Paulo. Estava indo encontrar o pai que morava em uma “cidade longe”.
O Boeing logo atingiu a altitude de cruzeiro e com ela veio a calma pós-tensão da decolagem, quando o barulho forte dos motores parece cessar um pouco, as pessoas começam a circular pelo corredor e um ar de aparente normalidade toma conta da cabine.
Nessa hora, a mente de Mariana voltou para Ronaldo. Tinha sido mãe adolescente. Não pensou em abortar, apesar de sua família ser liberal e não ter feito pressões, deixando a cargo da futura mãe decidir e ao mesmo tempo aberta para tirar dúvidas.
Uma leve turbulência trouxe Mariana de volta para a aeronave, que estava a mais de dez quilômetros de altitude.
— Tia, tô com muito medo —, balbuciou João enquanto começava a chorar e verter lágrimas sobre a pele do rosto.
Mariana, que se julgava destemida, tremeu.
— Quer vir pro meu colo?
O garoto esticou os dois braços em direção a ela.
Mariana viu que o sinal de atar os cintos estava desligado. Trouxe o menino pra cima de suas pernas e abraçou a criança. Não pôde deixar de sentir o cheiro de xampu infantil que exalava dos cabelos de João.
— Já, já passa. O avião é como um carro bem grande andando em uma estrada. E o carro sacode também, né? Cai em buraco. Tem pedrinhas no asfalto. O céu é a estrada dos aviões.
Os pequenos olhos negros de João começaram a fechar. Em cada leve solavanco da aeronave ameaçavam abrir, mas cada vez mais com menos intensidade. Dormiu.
Mariana voltou então pra Sorocaba, onde viveu parte de sua vida. Regressou para 2011, quando Ronaldo resolveu largar a faculdade e fazer um mochilão pelo mundo. Europa., África, Ásia. A mãe ficou desesperada. Mal tinha dinheiro para pagar as próprias contas. Quanto mais para bancar uma viagem ao redor do planeta. Mas Ronaldo foi para o Marrocos. Levou o violino e disse que conseguiria o dinheiro para comida e hospedagem tocando nas ruas. Doze anos depois, Mariana contava nos dedos as vezes que recebeu notícias do filho. Geralmente telegráficos cartões de Natal. Sete ligações. A última em 2018. Tinha conhecido uma alemã no Laos e estava se mudando com ela, grávida, para Hamburgo.
— Quero tanto te ver, meu filho. Me deixa ir.
— Eu te mando e-mail.
Ronaldo não tinha o e-mail de Mariana, que catava migalhas de informação com Marcos. O melhor amigo do filho achava aquela situação absurda, mas ao mesmo tempo buscava ser fiel à amizade.
— Por que ele faz isso comigo? —, perguntou certa vez a Marcos.
— Ele é assim. Ele sempre foi assim.
Ele era, de fato, assim.
Mariana achava que tinha um filho vivo para o mundo e morto para ela. Era um luto indeciso, estranho.
O sistema de som anunciava o começo do processo de pouso em Vitória. Mariana colocou João na poltrona ao lado. O garoto acordou, assustado.
— Calma, João. Já estamos pousando.
O avião fez uma grande curva e o pequeno corpo do passageiro foi em direção ao de Mariana.
— O que é isso agora, tia?
— O avião está fazendo uma curva para poder descer. Olha. Quando a a gente tocar no chão, você vai ouvir um barulho alto, alto, alto, e depois uma força te empurrando, mas dessa vez vai ser pra frente, tá bom? É normal, tá? Se não for normal eu te digo, combinado? Pode acreditar em mim.
— Tá bom, tia.
O pouso foi tranquilo até mesmo para João. Ele gostou da força causada pelo freio e riu. Achou divertido. Um brinquedo de parque de diversões.
Quando a porta da aeronave foi aberta, uma comissária veio logo pegar a criança, até então esquecida pela tripulação.
— Oi, João, vou te levar para seu pai. Vamos?
— Minha tia pode vir junto?
A comissária mordeu o lábio inferior, titubeou, mas acabou cedendo. Mariana pegou o casaco e a mala de mão. No bagageiro, uma mochila velha trazia costurada uma diminuta bandeira da Alemanha. Pensou no filho. Pensou no neto.
Os pensamentos foram logo suspensos. Mariana se assustou com a pequena mão pegando na sua.
— Vamos, tia.
No caminho, Mariana pensou que o avião poderia estar pousando em Hamburgo. Fantasiou que chegava a uma casa no subúrbio da cidade, uma casa simples. Mas que não encontrava o filho, que a família antiga havia se mudado para outra cidade. Destino incerto.
No fim de um longo corredor, a porta de vidro se abriu automaticamente. João largou as mãos de Mariana e da comissária. Correndo, fazendo a mochila colorida subir e descer em suas costas, lançou-se para os braços do pai.
Mariana continuava parada, de pé, vendo a cena e atrapalhando o fluxo de passageiros que desembarcavam. Ela deu um tchau para o garoto, que se afastava no colo paterno. João não respondeu nem olhou para sua recém amiga. Mariana riu.
*Dedicado à minha amiga D.C