Sete voos: uma jornada que diminuiu (um pouco) meu medo de voar
Acabo de voltar de uma maratona de sete voos em 28 dias de viagem pela Europa. Quando planejei essa epopeia terrível para um panicado, confesso que tremi. Mas até que no final das contas não foi tão ruim assim — minto, foi bem ruim, mas sinto que agora sou um “novo eu” no quesito aerofobia.
Mas antes vamos aos voos. Vou fazer um resumão. A ideia era passar duas semanas com minha mãe, entre várias cidades da Puglia (a bela região da Itália onde vive minha família paterna) e mais uns dias em Lisboa com ela e as outras duas semanas com um querido casal de amigos (Diego e André ♡) entre Madri, Sevilha e Barcelona. Foi tudo lindo, tudo maravilhoso, etilicamente delicioso. Essa segunda parte espanhola foi regada a muito vinho.
Quando paro pra pensar, fico meio boquiaberto: sete voos em quatro semanas. Quase bate meu recorde, que foram oito voos no mesmo período (minha primeira viagem com meu marido, em 2013, entre França, Itália, Letônia, Estônia, Suécia, Noruega e Portugal). Na época, eu já era panicado.
voo #01
O primeiro voo foi de Salvador (onde moro) para Madrid, pela Air Europa. Pensando na comodidade de minha mãe, uma senhora de 84 anos, fomos de Economy Premium, por oferecer mais espaço para pernas e poltronas mais largas e que reclinam mais. Senti muito medo nos dias que antecederam a viagem. Acho que a tensão de viajar com uma pessoa idosa e ter de dar conta de quase tudo sozinho me deixou mais ansioso ainda (já escrevi sobre viajar com idosos aqui no rivotravel). Chegada a noite da viagem, o primeiro baque: o avião era todo branco, sem a marca da empresa na fuselagem. Gelei. Como assim? Gosto de tudo certinho. Pensei logo: isso tá com cara de ser avião alugado (muito comum na aviação, algumas empresas sobrevivem apenas de alugar aeronaves para outras). Aí já fiquei pensando: se for mesmo o caso, como será a manutenção das peças? Será criteriosa? Engoli seco e embarquei. Horas mais tarde, no voo, perguntei a um comissário sobre o alvíssimo avião no qual estávamos. Ele respondeu que o avião era da Air Europa e seria pintado na semana seguinte. E é até capaz mesmo, o processo de pintura além de caro é demorado. E exige toda uma logística por parte das companhias aéreas, pois avião parado em solo é dinheiro perdido pra elas.
Voltando ao embarque em Salvador, ficamos uns bons minutos no finger (o corredor que liga o terminal ao avião). Eu, minha mãe e outra idosa em cadeira de rodas com o acompanhante. Completamente largados naquele cenário de filme de terror, com direito a luz branca meio piscante… Vou ou fico? Embarco ou desisto? Fiquei suando frio, esperando entrar naquele tubo metálico que nem o nome da empresa levava.
Como fomos os primeiros a entrar no avião, mofamos horrores até concluir o embarque e decolar. Não sei o que é pior: esperar sentado dentro da aeronave ou ser o último a entrar nela. Fiquei bem nervoso (controlado por conta da medicação), parecia uma faca entrando lentamente em meu corpo. Talvez por conta da demora no embarque, o piloto, na hora que “deu a partida", engatou a quinta marcha e em pouquíssimos minutos já estava pronto pra levantar voo na pista principal do aeroporto de Salvador. Foi tão rápido que a tripulação nem teve tempo de terminar aquelas explicações de praxe sobre a segurança em voo, largaram o procedimento pela metade e correram pra seus assentos. A decolagem foi um desastre, a noite estava com ventos (como se diz? Ventosa?) e talvez isso tenha interferido. Durante o voo, alternei pequeninos cochilos com um estado de letargia que me impedia de relaxar, ver um filme, ler um livro, enfim, de fazer algo para passar as 8h30 de voo. Para piorar, uma turbulência intermitente e moderada foi minha companhia até o destino. E teve uma hora em que os comissários pareciam bem agitados, andando rápido pela cabine. Achei melhor deixar o espírito jornalístico de lado e não ir assuntar. A ignorância às vezes é uma bênção. Para me dar um pouco de paz, peguei a cartinha que meu marido tinha escrito para ser lida no voo. Na verdade era quase um bilhete. Três linhas. Mas foi um afago no coração.
Chegamos em Madrid às 11h. O outro voo, para Brindisi, na Itália, seria só às 20h. Ainda bem que tem um hotel dentro do aeroporto (só que em outro terminal, bem distante na verdade, mas com ligação em ônibus). Deu pra dormir e tomar banho.
Voo #02
Esse segundo voo, horas depois, foi pela Ryanair. Já tinha voado na low-cost irlandesa algumas vezes em 2008. E parece que não mudou nada. A mesma esculhambação de 15 anos atrás. Até a venda de raspadinha permanece, para os passageiros apostadores. Tudo é um caos, até a identidade visual deles. Nada tranquilo e reconfortante para uma pessoa panicada. Pagamos a mais para ir na primeira fila e foi nossa salvação. As pessoas nas demais fileiras pareciam viajar encostando o nariz no assento da frente. Apesar do espaço extra para as pernas, nossas poltronas eram bem apertadas. Antes de decolar, tomei meu remedinho, como sempre faço nos voos. Mais uma vez, embarque demorado. Em um certo momento parou de entrar gente e o avião não partia. Aí a cabeça já começa a funcionar (mal): será que estão esperando um último passageiro atrasado? Ou tem algum problema técnico? Depois de intermináveis minutos, porta fechada, partiu. O esquema foi novamente “Velozes e Furiosos”, o piloto levando o avião para a pista na base do ódio, com direito a curvas fechadas em alta velocidade. Estou dizendo: Ryanair nunca é relaxante. Depois da tensa decolagem (não por ter sido ruim, na verdade para mim elas sempre são terríveis) eu capotei de cansaço. Acordei para comer uma deliciosa lasanha vegana. Eu amo comer e beber a bordo, pois além de me remeter à infância, àquela magia de fazer uma boquinha a 40 mil pés de altura, ainda tem o fator distração. Qualquer coisa que me entretenha durante o voo eu topo. O pouso em Brindisi foi um desastre, parece que o comandante simplesmente despencou. Mas enfim, depois de 24h desde a saída de casa, em Salvador, chegamos ao destino.
Voo #03
Dez dias depois (dez dias de família, cidades lindas, comida e bebida farta) chegou a vez de continuar a viagem. Os voos 3 e 4 da saga (Brindisi–Milano e Milano–Lisboa) foram com a Easyjet, uma outra low-cost. Nunca havia voado com ela. Já cheguei ao aeroporto meio grogue de remédio e imerso em uma loucura que era administrar os 15 minutos gratuitos do estacionamento, catar moeda para liberar o carrinho, ver que o sistema dos carrinhos estava quebrado, levar todas as malas até o embarque e ajudar minha mãe a sentar, voltar, sair do estacionamento e devolver o carro alugado (e descobrir que teria de pagar a mais pois devolvi o automóvel com o tanque faltando um mísero tracinho para chegar no 100% cheio, sendo que, ironia do destino, eles me entregaram o carro exatamente daquela forma e eu achei OK não reclamar). Ufa!
Enfim, depois desse estresse todo, hora de tentar relaxar um pouco. O aeroporto de Brindisi é bem interessante, com muito vidro, o que o torna solar e alegre. Acho que isso ajuda o panicado, pelo menos um pouco. Tinha uma “sala amiga” para pessoas como minha mãe, com mobilidade reduzida (não sei se o público é formado por outros grupos, como demais idosos, gestantes etc). Chegada a hora do embarque, para meu pânico, mais uma vez foi embarque remoto, sem finger, tal qual no voo Madrid–Brindisi. Além de ter de administrar sozinho duas pesadas malas de mão e dois enormes e nada leves casacos. Fiquei um tempão como o primeiro da fila, o portão de embarque já aberto, escancarado, recebendo o ar frio na cara. Mas congelante mesmo era o barulho dos motores do avião. Esse cortava a alma. Não gosto de ficar olhando o avião que vai me transportar. Parece uma coisa meio toureiro encarando o touro, sendo que nessa disputa eu não sei quem vai ganhar.
Embarco. A primeira impressão que tenho da Easyjet é muito boa. Parece ser bem superior à Ryanair. Avião limpo, identidade visual mais clean, equipe atenciosa e amigável. Isso pra a cabeça do panicado já dá um ar de tranquilidade e profissionalismo, pelo menos funciona assim em mim. Sinal inconsciente de que estamos seguros. Uma coisa que amei foi a decolagem super rápida (digo, o tempo entre aquela acelerada forte com os motores a mil e desgrudar as rodas do solo). Amei! Odeio quando o piloto parece usar quase toda a pista. Fico contando nervosamente os segundo, pensando: por que não decola? Sei que existem mil fatores que influenciam a extensão de pista que vai ser necessária para a decolagem (até mesmo temperatura externa e altitude do aeroporto!). Mas que me dá agonia quando demora pra “tirar o bicho do chão”, ah, isso me dá.
Voo #04
O segundo voo (Milano–Lisboa) foi o começo de meu ódio pela Easyjet. Tudo caótico. Poucas informações, atraso, calor, um ambiente minúsculo com centenas de pessoas aglomeradas. Assim como no primeiro voo, embarcaram minha mãe primeiro e sozinha, com uma espécie de contêiner-elevador, não me deixaram ir com ela. Fiquei preocupado de deixá-la só, visto que o ambiente caótico já antecipava o atraso. Quase uma hora depois, a multidão entrou lentamente no finger. E desceu quatro lances de escadas. E do nada estávamos no asfalto, encarando mais uma vez o avião. Pois é, um embarque remoto, porém com finger. Essa pra mim foi novidade.
Primeira fileira mais uma vez. Pelo menos uma alegria na vida do panicado. E o avião ainda nem tinha decolado e minha mãe já estava dormindo e roncando. Que inveja. A decolagem foi bem rápida também. Será que é uma marca da companhia? Durante o voo, vou ao banheiro e dou de cara com o piloto do lado de fora da cabine. Lógico que sei que a maior parte do voo é feita com piloto automático e que a tripulação apenas monitora tudo. Mas me dá muito calafrio ver o comandante fora de seu lugar à frente de tudo. Assustado, volto pro meu assento. E escuto um barulho de crepitar de fogo. O efeito do remedinho parece que passou naquele exato segundo. Mas logo vejo que o som era de uma sacola plástica sendo amassada. A mente panicada inventa é coisa.
Voo #05
O quinto voo foi cinco dias depois, de Lisboa para Madrid com a Air Europa. Antes de embarcar, chega um comentário de uma leitora. “Ah, Salvatore, nos vídeos você parece muito mais tranquilo”. Será que estou ficando “escolado"? Ou será o efeito da medicação? Fico com aquela pulga atrás da orelha. Bem, de volta ao voo, mais uma vez ele está atrasado. Que maré de azar. Começo a achar que esperar dentro do avião é pior. Melhor mofar no terminal. Dentro do avião você já começa a viver aquele ambiente enlouquecedor. Ou será que pode ser um efeito anestesiante? Um “ir se acostumando” com a situação? Não sei. Acho que vou de primeira opção.
Nesses cinco voos que peguei com minha mãe, foi reconfortante tê-la ao meu lado. Só de sentir a mão dela em meu braço já me acalmava (ok, acalmava um pouco pois ela é humana, não um remédio ansiolítico). A decolagem foi seguida de turbulência. Odeio. Odeio com força máxima. O jogo do ABC funcionou muito nesse voo. Como eu praticamente morro nas decolagens, uma seguidora do rivotravel no instagram — não lembro quem — sugeriu uma distração para a mente. A brincadeira (muito eficaz!) consiste em pensar em um tema (por exemplo, animais) e na hora do medo começar a elencar palavras, começando com a letra A (alpaca, arara, ariranha, aranha etc) e depois B e assim sucessivamente.
O voo foi super rápido, talvez menos de uma hora (acho que esperamos mais em terra do que no ar). A tripulação estava particularmente amarga nesse voo. Será que o voo super cedinho piorou o humor dos comissários?
De Madrid minha mãe pegou logo o voo pra Salvador. E eu me arrastei dopado pro airbnb que aluguei com o casal de amigos, que chegaria no dia seguinte.
Voo #06
O sexto voo foi Sevilha–Barcelona. Acordamos cedíssimo e chegamos ao aeroporto com ainda tudo escuro. Confesso que não gosto muito desse esquema de voo cedo demais. Pelo menos não tem trânsito na cidade. A noite anterior foi péssima, dormi pouquíssimas horas. Como não queria perder um dia de viagem dormindo, resolvi não usar o remedinho na potência máxima. Eu queria ter feito o trecho entre as duas cidades de trem, mas nas nossas pesquisas apenas achamos opções com “conexão” em Madrid. Ou seja, no total gastaríamos o mesmo tanto de horas e pagaríamos o mesmo preço do bilhete de avião. Dois votos contra um. Cedi.
Embarque? Remoto. Meu Deus, que sina.
Voo? Cheio e quente. “Socuerro”.
Cadeira? Apertadíssima. Sinto que vou beijar o encosto da poltrona da frente e esse beijo nem vai ser consensual, o horror.
Mas teve uma coisa maravilhosa nesse voo. Na decolagem, claro, fiz o ABC. E meu amigo Diego me ajudou. Foi divertidíssimo. O tema foi bem gay: divas. “J: Joelmaaaa! Letra P: Paula Toller. Paula Toller é diva? Não!". Obrigado, Didizinho de mi corazón.
Uma curiosidade: descobri que meu amigo também é meio panicado, mas na hora do pouso. Como pra mim esse é o momento mais feliz (pois está chegando perto do solo), quando estávamos nos aproximando de Barcelona foi minha vez de oferecer suporte emocional a ele. Fizemos um ABC e foi igualmente hilário.
Voo #07 — Ufa!
Cinco dias depois, peguei o trem rápido de Barcelona para Madrid (rolou até relato no instagram). Oh, God, consegui evitar um voo. Da estação madrilenha fui até o aeroporto de Barajas (achei que não chegaria nunca, o trem para o aeroporto, ao contrário do super veloz entre as duas maiores cidades espanholas, era ultra lento).
Ah, esqueci de contar. Estava eu em Sevilha e chegou um e-mail da Air Europa avisando que, como eles tinham trocado o avião no trecho Madrid–Salvador (e que este novo modelo não tinha a classe Premium Economy), eles tinham me passado para a Executiva! Os panicados serão exaltados! Eu na verdade meio que já esperava esse e-mail, pois minha mãe também tinha recebido essa comunicação semanas antes.
Então, chegando no aeroporto, fiz logo o check-in, passei pelo fast track (um acesso exclusivo sem filas para o raio X, as demais filas estavam enormes) e corri para a sala vip. Tenho zero classe, então fui comendo como se não houvesse amanhã. Pegando jornal, revista, tudo que tinha direito. Resolvi não beber, para não dar curto-circuito com o remedinho e acabar passando mal nas alturas. Não queria (mais uma vez) ser o passageiro muito louco aprontando altas confusões, como você pode ler aqui. A sala vip tinha um maravilhoso terraço com vista para o pátio das aeronaves. Um deleite para amantes da aviação como eu.
O voo Madrid–Salvador na executiva da Air Europa mereceria uma matéria a parte. Mas vou resumir: foi impecável. Comi, dormi, vi filmes, fiquei viajando no formato das nuvens, bati papo com comissário soteropolitano. A poltrona, gente. A poltrona. Larga, macia, reclinava 180 graus. Dormi belamente, e olha que tenho 1,86m de altura. A vontade era de nunca mais voar de econômica (kkkkkk o sonho).
No fim das contas, fico pensando: será que estou menos panicado? Sinto que um pouquinho menos estou, sim. Acho que esse intensivão de voos serviu pra me mostrar que é possível sim viajar com menos medo. Lidar com ele de alguma forma. OK, tem a parte psiquiátrica (os remédios pra a ansiedade prescritos por uma competente médica) e psicológica (a terapia que estou fazendo desde fevereiro). Mas li certa vez que uma forma de curar uma fobia é inserir por um tempo mais longo a pessoa naquele cenário que tanto temor causa. Talvez sete voos em 28 dias tenham funcionado comigo. Ou talvez tenha sido o deleite de voar na executiva.
Mas isso não quer dizer que esse contato intenso funcione para todos. Nem mesmo sei se funcionou no meu caso.
Sinto que o medo de voar ainda habita em mim, em certa medida. O tamanho disso? Só saberemos na próxima viagem.