Estou como? Feliz entre memórias de uma viagem pela capital sueca
Quando alguém pensa em uma viagem romântica, o que chega à cabeça? Paisagens belas? Passeios sob o luar? Resorts incríveis? Tudo isso está certo, mas para um casal de dois homens, outro fator entra em jogo: segurança. Por isso, escolher um destino LBGT friendly (ou seja, que abrace a diversidade sexual) é de suma importância. Foi assim que, em 2013, eu e meu atual marido, também conhecido como editor do rivotravel, nos vimos em um dilema na hora de planejar nossa primeira viagem internacional juntos. Queríamos muito ir pro Sudeste Asiático. Pesquisamos na internet para tentar decifrar se Vietnã, Laos e Camboja eram locais seguros para gays. As respostas eram conflitantes. Enquanto alguns internautas garantiam que os três países eram super legais para LGBTQIA+, outros relatos questionavam tal informação. Tudo que eu menos queria era me ver em situações como ter de evitar dar as mãos a Rafael ou um simples carinho no rosto.
Dessa forma, resolvemos ir no garantido: Escandinávia, com forte tradição de respeito aos gays. Mudança radical nos planos, eu sei. Mas fazer o quê? O que economizaríamos nas caras passagens para a Ásia gastaríamos na Suécia e Noruega, nações com alto custo de vida e preços proibitivos. E assim fomos. Depois de passar por Paris e Roma, desembarcamos em Tallinn, a bela e medieval capital da Estônia (que não é Escandinávia, eu sei, mas já, já conto o motivo pelo qual resolvi falar dela). Depois de dois dias idílicos, chegou a hora de partir rumo à capital da Suécia. E não seria de avião! O sonho para qualquer pessoa que, como eu, morre de medo de voar. Aquela região do mar Báltico oferece uma série de rotas feitas por ferryboats. Você embarca no meio da tarde, tem sua pequena e confortável cabine com cama de casal, e acorda já no destino. Não é maravilhoso? O ferry inclusive é uma atração especial. Além das paisagens lindas ao amanhecer, com a vista de centenas de pequenas ilhas e florestas envoltas em misteriosas brumas (Estocolmo, inclusive, é na verdade um arquipélago) dá para se divertir em um teatro meio cafona e até arriscar um karaokê com turistas bêbados. Terrível, eu sei.
Ainda sonolentos, desembarcamos cedinho em uma zona um pouco afastada do centro da capital sueca, mas com uma estação de metrô próxima. Fomos arrastando nossas malas até lá, no frio primaveril sueco que congela os brasileiros e faz os escandinavos correrem para “pegar um sol” nos parques. Chegando na estação central de Estocolmo, avistei logo o que eu amo: um grande quiosque de informações ao turista, onde poderíamos nos munir de tudo que precisaríamos para os próximos quatro dias. Desconfio inclusive que funciona 24h, pois era muito, muito cedo. Lá tinha até uma vasta oferta de camisas, muitas sobre o ABBA, talvez um dos mais famosos produtos de exportação local. A cidade inclusive possui um museu da banda, mas não fomos (perdemos alguns pontos na carteirinha gay internacional). Mas saímos do quiosque com o mais importante: o passe para usar bicicletas públicas, que quase dez anos atrás ainda eram novidade no mundo.
Deixamos nossas malas em armários com cadeados (lockers) na estação, pois nossos anfitriões do Couchsurfing (conhecem esse maravilhoso sistema? Já expliquei nessa matéria aqui) só poderiam nos receber de noite. Optamos por percorrer o centro antigo da cidade. Já andaram por uma cidade de manhã cedinho (quem curte uma balada pesada sei que já)? É uma experiência formidável. Tudo em silêncio, a urbe ainda acordando. Parece que as ruas são só suas! A arquitetura de Estocolmo em geral é bem austera, super diferente da parte mediterrânea da Europa, com exceção de uma praça com casas antigas pintadas com cores fortes. Foi andando sem rumo (e sem malas, ufa) que fomos parar em uma ilha mais deserta ainda chamada Riddarholmen (obrigado, Google). Não tinha uma alma viva. É sério, se não fosse o baixíssimo índice de violência urbana eu até ficaria com medo. Uma igreja aberta, a Riddarholmskyrkan. Igualmente vazia. E andando descobrimos um calçadão ao longo da orla (com uma turista americana perdida que buscou amizade, mas educadamente nos esquivamos, afinal era uma viagem romântica). De lá a vista era incrível, com destaque para o belo edifício da prefeitura, onde é realizado o banquete em homenagem aos ganhadores do prêmio Nobel.
Continuamos andando; a cidade aos poucos despertava. A limpeza das ruas é algo que salta aos olhos. E dobra aqui, dobra ali, vimos uma multidão. Chegamos juntos, é claro. Estava começando a troca da Guarda Real (a Suécia ainda tem rei e rainha). Confesso que não achei nada de mais. Seguimos. E demos de cara com o Riksdagshuset (que língua desafiadora…), o belo prédio do parlamento nacional. E em uma pracinha lá perto vimos as flores que, creio eu, foram as mais lindas que já vi assim, cara a cara. Estavam em enormes vasos em uma pracinha, a Gustav Adolfs Torg. Fiquei particularmente encantado com uma espécie vermelha e amarela que parecia estar pegando fogo (coloco uma foto abaixo). Pagamos o lindo mico de tirar fotos enfiando a cabeça no meio das flores. Nada como estar em uma cidade onde ninguém te conhece, não é mesmo?
E foi nesse esquema de “entra em beco e sai em beco”, como bem diria Gilberto Gil, que passamos o dia. Logo anoiteceu e fomos pegar nossas malas para irmos à casa dos nossos anfitriões na cidade. Pegamos o metrô na estação central e descemos umas seis estações depois. E o cenário era completamente diferente! Deixamos o movimentado centro para adentrar em um bairro completamente bucólico. Parecíamos estar em uma cidadezinha pequena, muito arborizada (a cidade toda é um paraíso nesse sentido), com ruas pequenas e calmas, casas de madeiras com românticos gramados na frente. O ritmo era bem diferente, e não tínhamos nos afastados muitos quilômetros do centro. O casal que nos recebeu foi muito fofo. Eram dois homens. Quer coisa mais escandinava que isso? O país foi um dos primeiros do mundo a legalizar o matrimônio entre pessoas do mesmo gênero.
Bem, a partir de agora não vou enumerar os dias. As memórias, apesar de vívidas em minha mente, se embaralham cronologicamente. Vai ser tudo no esquema “e teve uma vez que…”.
Então vamos começar: e teve uma vez que fomos à ilha de Skeppsholmen, de bicicleta, é claro. Bem, nem sei o motivo pelo qual estou falando isso, pois a atração principal, o museu de arte moderna, a gente resolveu nem entrar. Motivo? E quem se lembra? Mas fomos ao museu de arquitetura que fica logo ao lado, bem sem graça, é preciso admitir. Mas foi legal ver que eles tem uma sala super equipada para receber grupos escolares de crianças e desenvolver atividades educativas. Os países nórdicos possuem umas propostas de ensino para os pequenos bem interessantes.
E a vez que a gente tentou se aventurar em um supermercado? Aliás, eu amo ir aos mercados nas cidades que visito. Dá para saber muita coisa de uma sociedade a partir das coisas que as pessoas consomem. Nos EUA, por exemplo, uma vez me deparei com um corredor inteiro só com batata frita chips, diversos sabores, cores, temperos etc. Bem, voltando a Estocolmo, Rafa resolveu agradecer a hospitalidade de nossos anfitriões preparando um prato carro-chefe do menu rafaelino: espaguete ao molho de gorgonzola. A parte de achar o queijo foi fácil. E para escolher o creme de leite? Você sabia que lá tem uns 5.327 tipos de creme de leite? Pois é, nós também não sabíamos. E a gente tentando decodificar as embalagens, tudo em sueco, claro. Era um tal de analisa as fotos, compara o teor de gordura (se é que a gente entendeu a palavra certa para teor de gordura). Um caos. Graças a Jah que por lá quase todo mundo fala inglês. Pois paramos uma sueca de uns três metros de altura e pedimos ajuda. Ela parecia expert no assunto, pois resolveu pegar cada uma das embalagens e explicar tudo, super falante. E a gente só no “mas moça, a gente só quer fazer um macarrão”. Saímos de lá sem saber se estávamos levando o produto certo. Mas acho que estávamos, sim, pois o jantar foi um sucesso. Ah, e de lá do mercado também saímos com um pacote enorme do tradicional pão sueco Knäckebröd (as embalagens são tão lindinhas). Parecia que estávamos levando um pneu de bicicleta nas mãos, pois o pão, que mais parece um biscoitão, é redondo e achatado.
Ah, e lembro também que uma vez (olha lá o “uma vez” de novo) estávamos pedalando no centro, em uma avenida grande, bem no horário do rush. Demos de cara com uma grande rotatória, com um encontro de várias avenidas. E a gente pedalando. E a rotatória em obras, sem ciclovia. E os carros surgindo de todos os cantos, se duvidar até dos bueiros. E eis que surge um ônibus atrás da gente. Bateu aquele desespero, claro, pois na hora achei que seríamos esmagados pelo ônibus. Olho para trás (certamente com um olhar esbugalhado assustado freak descontrol) e vejo o motorista fazendo uns sinais para mim. Mas não era aquele universal sinal que vocês sabem qual é. Ele estava fazendo um sinal para a gente manter a calma. Pois não é que ele foi bem devagarzinho atrás da gente, segurando o trânsito? Olha, um beijo, motorista desconhecido, você não só não nos matou como nos salvou.
E por falar em ônibus, teve uma vez (hahahahaha) que a gente pegou o ônibus para ir em uma ilha mais distante, para um sauna. Os suecos são loucos por saunas, invenção dos vizinhos finlandeses, que inclusive escolheram uma fácil palavra de sua complicadíssima gramática para batizar a casinha de madeira com ar muito quente. Na verdade eu odeio (mas odeio mesmo) sauna, mas é aquela coisa: em Roma, faça como os romanos. E lá fomos nós no ônibus. E não é que lá dentro tinha um display com uns livrinhos? Achei super curioso. Era um guia gratuito com todas as linhas e horários que o ônibus parava em cada ponto (os smartphones ainda não eram tão populares). Achei maravilhoso. Ah, e por lá, no verão, os motoristas podem trabalhar de bermuda. Tá na hora do Brasil copiar isso.
E lembrei também das estações surreais de metrô. Vou deixar umas fotos aqui embaixo, elas falam por si.
Eita, acabei esquecendo de falar da sauna. Pois chegamos lá e já tava fechando. O sol até bem tarde no céu nos enganou e perdemos o horário. Quem estava dentro podia ficar, mas novas entradas já estavam encerradas. Nossa, como fiquei triste (ahahaha). Pelo menos deitamos à beira do lago em frente à sauna e ficamos apreciando aquela famosa paisagem de pinheirinhos ao pôr do sol. Até dormimos um pouco. Fomos acordados com o barulho do povo da sauna pulando na água gelada do lago. Povo doido. Ah, todo mundo peladão, bem no estilo dito “alternativo” sueco.
E essa não foi a única vez que tiramos um cochilo ao ar livre: também dormimos em um parque. Na verdade tava mais para um canteiro às margens do mar, mas finge que era parque que fica mais bonito. É surreal isso, você dormir (e dormimos bem, tipo uma hora inteira) e acordar com os pertences ainda ao lado. Sei que isso tudo que estou escrevendo pode soar como “oh, olha como eles são perfeitos” (nota: não, não são. Muitos relatos de xenofobia com imigrantes, alcoolismo e depressão). Por sinal, lá presenciamos um banheiro público em uma estação com uma forte luz azul neon dentro das cabines. Descobrimos que aquela tonalidade dificultava a vida dos drogados em achar a veia na hora de injetar heroína. Mas, apesar de tudo, caramba, não dá para não admirar a segurança da cidade. É surreal. Uma vez paramos para almoçar em um pequeno restaurante (kebab, a comida oficial dos viajantes com grana curta). Um homem, em uma mesa na calçada ao lado da nossa, simplesmente se levantou e entrou para fazer sabe-se lá o que dentro do restaurante. E deixou o celular bonitão bem em cima da mesa. Ficou lá dentro uns bons minutos, voltou, pegou o celular e foi embora. Outro caso: nossos anfitriões moravam no térreo e as janelas envidraçadas da sala davam para a calçada (privacidade zero). Sem grades. Isso explode a cabeça de um brasileiro. Acho que perceber essas sutilezas que nos diferenciam (para o bem e para o mal) é uma das coisas mais bacanas em uma viagem, não importa quão longe o viajante vá..
Por falar em celular, nessa viagem à Europa eu comprei um iPhone em Roma. Pois chegando em Estocolmo ele ficou completamente louco, abrindo aplicativos sozinho, 100% possuído pelo demônio do filme O Exorcista. Resolvemos ir a uma Apple Store da cidade. Acontece que o celular ficava loucão no momento que bem entendia. E claro que chegando na loja, ele ficou lá, bonitão, funcionando de boas. Dar meia-volta e ir embora? Resolvi arriscar. Pois mesmo sem conseguir provar a doideira do aparelho para o funcionário, ele tirou do mostruário uma caixinha lacrada com um novo e disse: “Sentimos muito, vamos trocar por este”. E eu nem mostrei nota fiscal nem nada! Ele simplesmente confiou em minha palavra de que o aparelho era novo e que não estava funcionando corretamente. Achei surreal. Em tempo: quase dez anos depois (e muitas trocas de aparelho), por algum motivo meu bloco de notas ainda aparece na tela com o nome “påminnelser”, que graças ao Google Tradutor descobri significar “lembretes” em sueco.
E teve uma vez (risos. Já tá ficando chato? Pois vai continuar) que a gente estava andando pela cidade e cruzamos por uma feira livre de rua. Quanta variedade de frutas, todas lindas. Me fez lembrar da Feira de São Joaquim, em Salvador. Cada qual com sua beleza, totalmente diferentes uma da outra, mas em um belo diálogo na minha cabeça, uma complementando a outra.
E quem fala em feira fala em verdura. E Rafa é vegetariano. Pois ele se esbaldou (a ponto de perder a conta de quantos comeu) em um exclusivo e típico restaurante chamado…Mc Donalds. Pois lá tinha no menu fixo um divino sanduíche com “hambúrguer” de grãos. Era bom mesmo, eu também virei fã. Inclusive os últimos comemos no aeroporto de Arlanda, o maior da capital, à espera de nosso voo para Bergen (Noruega). Arlanda por sinal é belíssimo, com uma enorme fachada envidraçada voltada para o pátio dos aviões.
Mas calma que ainda tem coisa para contar de Estocolmo. Um dia, passamos por um belo jardim público, sem muros ou cercas. Muito bem arborizado, cheio de plantas com flores, coelhinhos saltitantes e…lápides! Pois na Suécia rola esse tipo de cemitério, que na verdade é um espaço para todos. Já tinha visto um assim em Malmo, no sul do país, em uma viagem que fiz para Copenhague (Dinamarca) e Islândia (inclusive essa última você pode ler aqui). Pois o “cemitério” de Malmo era enorme, com direito a muitos bancos para sentar e uma bela vista para um lindo canal. Toparia fazer um piquenique entre os mortos? Eu achei genial a ideia. Acho que lidamos muito mal com o fim da vida.
Estocolmo, ao contrário de cidades como Paris, Roma e Barcelona (apenas para citar alguns destinos europeus), não é dotada de grandes monumentos ou um apelo turístico explícito. O centro antigo (chamado de Gamla Stan) é bem interessante, é preciso dizer. Mas se você não liga para pontos óbvios e gosta de conhecer a alma de uma cidade, Estocolmo é um excelente destino, com muito verde, cultura e um povo acolhedor (mas leve dinheiro, ô cidade cara).
Deixo por fim o relato de um dos lugares mais incríveis que fui na capital da Suécia. É um museu sobre um…navio de madeira! Exatamente. E detalhe: um navio que naufragou após navegar poucas centenas de metros. O Vasa Museum, sobre o barco de mesmo nome, é formidável. A expografia, a forma como os especialistas pensaram e montaram a exibição toda, é simplesmente invejável. O Vasa é uma embarcação do século XVII que afundou e ficou intocado em seu leito de quase morte por três séculos, até que a tecnologia fosse alta o suficiente para recuperá-lo. Por conta da salinidade do mar Báltico, ele se manteve praticamente intacto. E pode ser observado em todo seu esplendor, cheio de esculturas entalhadas, bem no meio do museu. E com 98% de partes originais! Ao redor dele, várias coisas legais, como documentários sobre o passado do Vasa e a operação de resgate. Também havia bonecos com reconstituições de como eram a fisionomia e estatura dos marinheiros, a partir dos crânios recuperados. E até uma reconstituição de uma rua da Estocolmo do século XVII, com pessoas falando o sueco arcaico. Muito bom mesmo.
Finalizo esse texto dizendo: viajar, além de uma delícia, é uma enorme fonte de aprendizado. Pena que é tão caro, mesmo para dentro do Brasil. Pois enquanto a poeira e as moedas estrangeiras não baixam, vamos aproveitar as descobertas em nossas próprias cidades. Aposto que, procurando bem, dá para conhecer muita coisa nova, mesmo para quem mora há muitos anos no mesmo lugar. Mas, se tiver umas coroas suecas sobrando na carteira, vá sem medo para Estocolmo. Literalmente. Um destino seguramente lindo para todas, todos e todes.