O amor e outros medos

Foi que nem a música. Foi que nem o clichê. Foi por medo de avião que Juca pegou pela primeira vez na mão de Paula. Os dois estavam sentados lado a lado há quase uma hora, sem olhar um para o outro. Foi o tremelique da turbulência que levou ao contato físico reservado apenas aos mais íntimos. Ela olhou meio surpresa e deu um sorriso. Por um segundo, Juca esqueceu o medo, esqueceu a impressão iminente de que o avião iria se partir em mil pedaços. Não disse nada. Ela também estava nervosa — os olhos contradiziam a perfeita linha de dentes à mostra. 

A turbulência foi embora e então os dois desgrudaram as mãos. O clima meio estranho ficou no ar, então ela venceu a timidez e começou a fazer as perguntas protocolares. Oi, tudo bem, qual seu nome, nossa, que legal, você é físico, também mora em Porto Alegre? Olha só, tá indo pra Bahia? Ele também entrou no jogo e Oi, legal, prazer, você é a primeira engenheira florestal que conheço, nossa, moramos pertinho um do outro. 

A conversa seguia morna até que ele, ou foi ela, puxou o tema medo de avião. Aquilo era algo que mexia com os dois, mexia mais que o fato de ambos torcerem pro Grêmio. Ah, nem te conto, Paula, já fiz de tudo: terapia, análise, hipnose, jogo de tarô. Nossa, eu também, Juca, fiz tudo isso. Nada do medo passar. Quase fui parar no posto médico de Guarulhos uma vez, tamanha a ansiedade. Jurava que ia morrer no avião, que ele ia cair, já me via presa numa bola de fogo. Pior que nem dava para adiar o voo, era viagem de Lua de Mel. Você é casada? Não, divorciada. “Ah”. 

O piloto anunciou a aproximação do aeroporto de Brasília. Lá, ele pegaria uma conexão para Salvador, onde participaria de um congresso. Ela ainda ia esperar por sete horas até pegar um voo para Boa Vista, para uma visita à mãe. Olha, não quero ser invasivo, mas adoraria tomar um café com você quando a gente tiver de volta, tem um bem gostoso na Sarmento Leite. Claro, vamos, sim, anota meu WhatsApp. 

O desembarque começou e cada um foi logo tratando de pegar sua mala de mão. Juca pensou em oferecer ajuda, a bagagem de Paula parecia tão pesada, mas não queria de forma alguma parecer machista. Se bem que poderia ser interpretado como um gesto gentil. Ela pegou a mala sozinha. 

Caminharam em silêncio, lado a lado. Na área de desembarque, beijinhos no rosto, prazer, até breve então. Se cuida, bom congresso. Valeu, boa sorte no voo, se o avião balançar, pensa em mim,

Pensa. Em. Mim. 

O sorriso de Paula tranquilizou o rapaz pela ousadia. A jogada tinha sido boa. Você também, Juca. Se balançar muito lá em cima, se lembre de mim.

E cada um foi pro seu lado. Paula buscou uma cadeira vazia no aeroporto super lotado para mofar na espera do próximo voo, Juca correu para pegar a conexão. Os pensamentos também passaram depressa. Mando mensagem agora? Ou quando chegar em Salvador? Ou quando voltar a Porto Alegre?  

Oi, aqui é o Juca. Boa viagem.

Para você também :-)


Uma semana depois, lá estão os dois no tal café da Sarmento Leite. O encontro parecia fadado ao fracasso. Nenhum assunto engatava. Até que ela puxou o “nossa, e esse medo de voar, hein?”. Os dois caíram na risada. Pois é, muito louco isso. É meio sem explicação, né?, começa Juca. É saber que o avião é uma parada super segura, mas ao mesmo tempo ter a certeza absoluta de que seu voo vai cair, que aqueles serão seus últimos minutos de vida. Ela apenas sorria enquanto segurava a xícara de café com leite e uma dose extra de creme. Juca estava falante: Nossa, e quando a aeromoça dá as instruções em caso de emergência? Tenho vontade de chorar quando ela fala “em caso de pouso forçado”. Morro e ressuscito umas dez vezes. 

O primeiro encontro deu lugar ao segundo, e ao terceiro, e ao quarto, e ao primeiro beijo na boca, e ao quinto. No sexto, já oficializaram o namoro. Foi no sétimo que o sinal amarelo acendeu. Estavam na fila da bilheteria do cinema e Juca não parava de falar de seu trabalho na universidade, de como estava lutando para terminar o pós-doutorado, dos congressos chatos, de como tinha alunos incríveis e alunos medianos e alunos péssimos e reuniões de departamento. Paula comia pipoca e olhava para o chão. Juca percebeu o desconforto da namorada. Pensou um pouco e lançou o clássico da relação dos dois, o “nossa, e esse medo de voar, hein?”. Paula quis premiar o esforço e deu uma risada. Meio nervosa, sim, mas ainda assim uma risada. 

 
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Mas no vigésimo primeiro encontro a coisa desandou de vez. Não havia no restaurante um casal mais desconectado que aquele. Cada um estava em seu celular há pelo menos 20 minutos, tempo suficiente para terminar a sobremesa e o cafezinho. A conta, por favor. Saíram caminhando pela noite abafada do verão de Porto Alegre. Ju, vamos entrar aqui no shopping um minuto, quero comprar um remédio para dor de cabeça. Ok, vamos.

Paula entrou na farmácia enquanto Juca ficou do lado de fora, vendo umas vitrines. Enquanto esperava sua vez de ser chamada pelo caixa, ela olhou para o namorado e parecia estar encarando uma dessas pessoas que passam às centenas diariamente por nós, nas ruas, nos bares, nos aeroportos. Dessas que sentam ao nosso lado no avião e passam o voo inteiro dormindo ou lendo ou trabalhando ou simplesmente evitando qualquer tipo de contato.

Ju, precisamos conversar. Para mim, não dá mais. Não estou me sentindo tão conectada a você. Desculpa, temos de terminar. Foi assim, na lata, no meio de um corredor horroroso com luzes brancas. Juca não se mostrou surpreso, parecia antecipar o desastre. Soltou um resignado Tudo bem, eu entendo.

Os dois agora caminhavam lado a lado em direção à saída do shopping e o silencio era insuportável. Até que Juca puxou a recém ex-namorada pelo braço e disse vem, vem comigo. Andou decidido em direção a uma fileira de poltronas de massagem automática, todas em couro preto já bastante surradas pelo tempo. Juca tirou duas notas de dez reais da carteira. Logo, as cadeiras começaram a vibrar.

Senta, Paula. Paula sentou.

Juca sentou ao seu lado.

Agora fecha os olhos. Paula obedeceu. 

Juca esticou o braço e pegou na mão daquela mulher, uma quase desconhecida, mesmo após vinte e um encontros. 

Ele se aproximou do rosto de Paula e disse: 

Turbulência é uma merda, né?

Paula, sem abrir os olhos, sorriu.

E os dois passaram os tremidos nove minutos restantes segurando um a mão do outro. E pensando em amores não concretizados. 

E aviões caindo.